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A Revolta da Vacina
19 Outubro 2016 | Por Jeanne Abi-Ramia
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E lá estava Oswaldo Cruz/ entre a febre e a espada/ que para ele apontada/ sem dúvida fazia jus/ àquela falta de luz/ que a imprensa semeara/ entre a gente que gritara/ seu não à vacinação/ que por decreto de então/ obrigatória se tornara 

 

(Edmilson Santini, cordelista. Trecho do cordel Oswaldo Cruz, entre a Febre e a Espada)

 

Considerações

 

A Europa como referência

A Revolta da Vacina (Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro)

No alvorecer do século XX, o Brasil vivia uma época em que as ideias de “progresso”, divulgadas pelos intelectuais da geração de 1870, conduziriam às ações que pretendiam integrar o país, recentemente republicano, à experiência, até então vitoriosa, dos países do Ocidente considerados adiantados. A Europa era a referência para que o Brasil passasse a ser “moderno e progressista”. Tempos de teorias científicas ligadas ao determinismo climático, ao positivismo, ao evolucionismo, ao darwinismo social.

O Rio de Janeiro, nos derradeiros anos da década de 1890, era reconhecido pelas belezas naturais, embora não fosse traduzido, no sentido sanitário, como o melhor dos mundos. Ainda era um espaço de tessitura urbana, com ruas estreitas, pouco cuidadas e de saneamento precário. Quadro que deixava a população e os visitantes reféns de doenças como febre amarela, varíola, tuberculose. Os comandantes de navios vindos de outros locais do mundo alardeavam, sem a menor preocupação em esconder, que não aportariam na cidade. Sabia-se que os recém-chegados vindos de todos os cantos do mundo corriam sérios riscos de contraírem doenças infecciosas, que poderiam levá-los à morte.

O “túmulo dos estrangeiros”

Rua do Resende fundos (Fonte: Augusto Malta/Fundação Museu da Imagem e do Som/RJ)

A cidade era conhecida internacionalmente como “o túmulo dos estrangeiros”. Tal referência surgiria, possivelmente, a partir dos versos atribuídos ao cônsul austríaco no Brasil, Ludwig Ferdinand Schmid (1823-1888), ao descrever o clima do Rio de Janeiro no verão: “Oh! sombra, sobre a imagem encantada./ Cores escuras pousam sobre os campos e florestas /O mal da natureza paira, poderoso /Sobre a florida superfície tropical /O poder supremo/ Deste Império não é de nenhum Herodes /No entanto é a terra da morte diária /Túmulo insaciável do estrangeiro”.

As epidemias, as doenças e a falta de saneamento básico criavam obstáculos para que existisse a sonhada sociedade dita moderna e protagonista daquele tempo. Os letrados e pensadores entendiam, colocando-se ao lado dessa causa, ser um avanço aproximar-se dos padrões europeus de cultura e de urbanidade. No período, reformas urbanas significavam inserir o Brasil na Belle Époque.

Eram dias difíceis. No quadro difuso e instável das cidades brasileiras, casas e ruas misturavam-se numa dinâmica onde os limites espaciais, inúmeras vezes, constituíam-se historicamente ao sabor dos interesses dos grandes proprietários de terras.

A capital da República, recentemente instalada, reunia uma estrutura social diferenciada de outras cidades brasileiras como, por exemplo, São Paulo. A presença de jovens militares e uma menor dependência das camadas médias “com relação às classes agrárias favoreceu até certo ponto uma política de colaboração de classes. Os movimentos de protesto no Rio de Janeiro, até 1917, tiveram um conteúdo mais popular do que especificamente operário”, segundo o historiador Boris Fausto. A chamada Revolta da Vacina, ocorrida entre 10 e 18 de novembro de 1904, durante o governo de Francisco de Paula Rodrigues Alves, está dentro desse contexto.

As desconfianças e os medos

A população da capital federal, por sua vez, estava sob um clima de desconfiança quanto aos novos tempos: talvez nem tão novos assim. Afinal o novo presidente representava a permanência da hegemonia e do projeto político paulista. Para seus opositores, Rodrigues Alves, que assumira a presidência da República em 1902, daria continuidade à política impopular adotada pelo seu antecessor - Manuel Ferraz de Campos Sales enfrentara graves questões econômicas e fiduciárias; e agitações, como a Revolta da Armada, a Revolução Federalista e o movimento de Canudos.

Os presidentes, ao pretenderem apresentar ao mundo desenvolvido, o das grandes potências, a imagem de um governo sólido, estável, dotado de instituições liberais, economia saudável e administração competente, tinham como intenção atrair recursos sem os quais a cafeicultura paulista exportadora não poderia sobreviver. Necessitavam de empréstimos externos que financiassem a expansão das lavouras diante do preço declinante das sacas. Por outro lado, careciam de recursos técnicos, de infraestrutura e da mão de obra dos imigrantes europeus.

Rodrigues Alves apresentou um programa de governo que consistia em dois pontos primordiais: modernizar o porto e remodelar o Distrito Federal. Isso exigia atacar o mal que assolava a cidade: doenças como peste bubônica, febre amarela e varíola. A partir dessas decisões, profundas mudanças aconteceriam no Rio de Janeiro: vitrine, cartão postal e capital federal. Espaço urbano que ainda hoje, segundo a historiadora Marly Mota, continua sendo, como um dos fundamentos da sua identidade política, “a caixa de ressonância dos problemas nacionais” mesmo “depois de ter deixado de ser a capital do país, (...) e apesar de esvaziada dos principais signos que sustentavam a sua capitalidade”.

No contexto da cidade remodelada, a população, a partir da derrubada de casarões e cortiços, e do consequente despejo de seus moradores, apelidou o movimento de “bota-abaixo”. O objetivo era a abertura de grandes e modernas avenidas com edificações de cinco ou seis andares. Os discursos modernizadores, oriundos das grandes reformas que rasgaram o tecido urbano nas grandes capitais europeias a partir da década de 1840, preconizavam necessidade de aeração, de circulação, de lazer e de monumentalidade.

Havia, contudo, o outro lado da moeda: tais ações estabeleceram paralelamente uma lógica de exclusão espacial das camadas desvalidas que compunham a população do Distrito Federal. Nas imediações das grandes artérias, lentamente, o habitar pouco custoso praticamente desapareceu.

Os projetos e os motivos

Rua da Carioca, 1906 (Fonte: Augusto Malta/BN Digital)

Segundo a oligarquia paulista do café, de quem Rodrigues Alves era representante, além de vergonha nacional, as condições sanitárias precárias e insalubres do Rio e do seu porto impediam a chegada de investimentos, maquinaria e mão de obra estrangeira. O projeto sanitário deveria ser executado. Rodrigues Alves nomeou, então, dois assistentes: o engenheiro Francisco Pereira Passos, como prefeito, e o médico sanitarista Oswaldo Cruz, como chefe da Diretoria de Saúde Pública. Cruz assumiu o cargo em março de 1903, declarando: “Deem-me liberdade de ação e eu exterminarei a febre amarela dentro de três anos”. O sanitarista cumpriu o prometido.

As ideias de saneamento não eram propriamente novidade. Diante das condições de insalubridade, de ausência de saneamento e de agentes para enfrentar o problema, epidemias se espalharam pela cidade entre 1850 e 1870. Já existia uma obrigatoriedade de vacinação no país, contra a varíola, para as crianças, desde 1837, e, para adultos, desde 1846. Entretanto, não era seguida, porque a produção da vacina em escala industrial, como diríamos hoje, começaria apenas em 1884.

Várias moléstias faziam vítimas no Rio do início do século. As principais, que já atingiam proporções epidêmicas, eram a peste bubônica, a febre amarela e a varíola. Mas havia também sarampo, tuberculose, escarlatina, difteria, coqueluche e tifo, entre outras. Para combater, especificamente, a peste bubônica, Oswaldo Cruz formou um esquadrão especial de 50 homens vacinados que percorriam a cidade espalhando raticida e mandando recolher o lixo. Criou o cargo de “comprador de ratos” – funcionário que recolhia os ratos mortos, pagando por animal. Já se sabia que eram as pulgas desses animais as transmissoras da doença. A campanha contra a peste bubônica correu bem.

Em 1881, o médico cubano Carlos Finlay havia identificado o mosquito Stegomyia fasciata como o transmissor da febre amarela. Cruz, então, criou as chamadas “brigadas mata-mosquitos”, que invadiam as casas para desinfecção.

Mas o método de combate à febre amarela, que invadiu os lares, interditou, despejou e internou à força não aconteceu em clima de tranquilidade. Batizadas pela imprensa da época como “Código de Torturas”, as medidas desagradaram também a alguns positivistas, que reclamavam da quebra dos direitos individuais. Além disso, nem mesmo acreditavam que as doenças fossem provocadas por micróbios. Por sua vez, jacobinos e florianistas, que já articulavam um golpe contra o presidente Rodrigues Alves, perceberam que poderiam canalizar a insatisfação popular em favor de sua causa: a derrubada do governo, acusado de privilegiar os grandes fazendeiros e cafeicultores paulistas.

A lei e a imprensa

Oswaldo Cruz, seu filho Bento e o assistente Burle Figueiredo 1910 (Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz)

No dia 31 de outubro, o governo conseguiu aprovar a lei da vacinação. Preparado pelo próprio Oswaldo Cruz, o projeto de regulamentação saiu repleto de medidas autoritárias. O texto vazou para um jornal. No dia seguinte à sua publicação, começaram as agitações no centro da cidade.

A imprensa, dividida, teve um papel significativo no desenrolar dos acontecimentos. Jornais se posicionaram contra ou a favor da lei estabelecida pelo governo federal. O Correio da Manhã, por exemplo, ocupava um lugar no bloco oposicionista. A Tribuna, que circulava no Rio de Janeiro e que, segundo o historiador Nelson Werneck Sodré, “excedia-se na sua linguagem”, posicionou-se a favor da vacina, mas não de forma obrigatória. Entendia que o governo deveria garantir, por meio da propaganda, “a adesão da população através do convencimento”. É relevante perceber a presença de um jornalismo engajado com as questões do seu tempo.

Os positivistas protagonizaram a cena política e social por meio de artigos inflamados nos jornais da época. Jacobinos e florianistas, financiados pelos monarquistas (que apostavam na desordem como um meio de voltar à cena política), também utilizavam os jornais, com artigos e charges, para passar à população suas ideias conspiradoras. Um debate temático em que preceitos e conceitos eram questionados.

As dúvidas e as questões

As dúvidas quanto ao novo eram muitas. E não representavam apenas os temores das camadas populares, ditas “desinformadas”. Um exemplo importante pode ser observado no pronunciamento, quanto à aplicação da vacina contra a varíola, feito pelo ilustre jurista Ruy Barbosa: “Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução no meu sangue, de um vírus sobre cuja influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”.

A oposição e o projeto de golpe

A oposição política, ao sentir a insatisfação popular, tratou de canalizá-la para um plano arquitetado tempos antes: a derrubada do presidente Rodrigues Alves. Um golpe de Estado foi armado. Seria desencadeado durante o desfile militar de 15 de novembro, almejando restaurar as bases militares dos primeiros anos da República. Era uma tentativa de retomar o papel que os militares desempenharam no alvorecer republicano.

A data escolhida para deflagrar o golpe militar era repleta de simbolismo: um renascimento do espírito perdido e comprometido pelo que os insurretos entendiam ter sido “conspurcado pela politicagem grosseira dos civis com a elite paulista à frente”. A vitória do movimento faria surgir uma nova República, que retomaria a “inspiração original de seus fundadores positivistas, em particular Benjamin Constant e seus alunos, que formavam a oficialidade jovem da Escola Militar do Brasil, na Praia Vermelha”, segundo palavras de Nicolau Sevcenko.

Um dos líderes da trama seria o General Silvestre Travasso, justamente o comandante das tropas em parada que incitaria os participantes à rebeldia, contando com o apoio dos oficiais comprometidos com o movimento. Contudo, com a cidade em clima de terror, a parada militar foi cancelada. Lauro Sodré e outros golpistas ainda conseguiram tirar da Escola Militar cerca de 300 cadetes que marchavam, armados, rumo ao Palácio do Catete. Mas os próprios insufladores da revolta perderam a liderança e o movimento tomou rumos próprios.

A Revolta da Vacina - ação e reação

O que deflagrou a Revolta da Vacina foi a publicação, no dia 9 de novembro de 1904, do plano de regulamentação da aplicação da vacina obrigatória contra a varíola. A partir daí, entre os dias 10 e 18, a cidade do Rio de Janeiro viveria o que a imprensa chamou de “a mais terrível das revoltas populares da República”. No dia 12, muitas pessoas se concentraram nas ruas. No dia seguinte o caos estava instalado. Na edição do dia 14, o jornal Gazeta de Notícias publicava: “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas, edifícios públicos e particulares deteriorados”.

Página do jornal Gazeta de Notícias 14/11/1904 (Fonte: Gazeta de Notícias/BN Digital)

O cenário era desolador pelas ruas centrais da cidade: barricadas foram erguidas em verdadeiras trincheiras, delegacias e repartições públicas assaltadas e invadidas. A existência de vielas, de becos e a própria topografia da cidade propiciava aos insurretos a oportunidade de armadilhas e refúgios.

No primeiro momento, as autoridades perderam o controle da região central e dos bairros periféricos, como a Saúde e a Gamboa, onde se concentravam as moradias das camadas populares. Porém, quando reagiram, utilizaram os recursos de contenção disponíveis. O governo reforçou a guarda do palácio, mobilizando a Polícia, o Exército, a Marinha e a Guarda Nacional. Contando com tais forças repressivas, conseguiram responder ao movimento.

A questão era bastante direta e clara para o governo republicano: como refletir, para o resto do mundo, a imagem de uma nação próspera, civilizada, ordeira e dotada de instituições, diante da presença, em plena capital republicana, de uma “(...) multidão indômita, composta de aventureiros, mestiços, negros e imigrantes pobres, que ao primeiro grito de motim forravam a cidade de barricadas e punham em xeque as forças do governo”?

Se no dia 15 a revolta da Escola Militar já havia sido controlada, com a rendição dos cadetes, depois que a Marinha bombardeara a Escola Militar, a revolta popular persistia. Conflitos isolados avançavam nos bairros da Gamboa e da Saúde. No dia 16 de novembro, foi decretado o estado de sítio e revogada a obrigatoriedade da vacinação. Com isso, o movimento popular se desarticulou. Além dos mortos, centenas de presos foram enviados para a Ilha das Cobras. Muitos foram deportados para o norte do país, e a maior parte não passou por processos formais de julgamento.

Com os revoltosos subjugados e a retirada do pretexto imediato (a vacina obrigatória), o movimento se encerrou. A Capital Federal pagou um preço visível no seu espaço urbano: caos de destroços e ruínas, com marcas de combate por toda a parte, além de um número expressivo de mortos, feridos e presos. Mesmo com a revogação da obrigatoriedade da vacina, permaneceu válida a exigência do atestado de vacinação para trabalho, viagem, casamento, alistamento militar, matrícula em escolas públicas, hospedagem em hotéis. A revolta foi sufocada e a cidade, remodelada, como queria Rodrigues Alves.

Estudos indicam, quanto à questão das doenças que o presidente Rodrigues Alves decidiu enfrentar, que, em 1904, aproximadamente 3.500 pessoas morreram de varíola. Dois anos depois, esse número caía para nove. Em 1908, uma nova epidemia elevou os óbitos para cerca de 6.550 casos. Em 1910, foi registrada uma vítima.

No primeiro semestre de 1904, foram feitas cerca de 110.000 visitas domiciliares e interditados 626 edifícios e casas. A população contaminada era internada em hospitais. Mesmo sob insatisfação popular, a campanha deu bons resultados. Segundo documentos da época, as mortes, que em 1902 chegavam a 1.000, baixaram para 48. Em 1909, não foi registrada no Rio de Janeiro nenhuma vítima da febre amarela.

A cidade, resultado de uma experiência secular de adaptação da arquitetura portuguesa aos trópicos, estava, enfim, reformada e livre do nome de “túmulo dos estrangeiros. Consta que, atualmente, a Organização Mundial da Saúde, da ONU, discute a destruição de exemplares do vírus da doença, ainda mantidos em laboratórios dos Estados Unidos e da Rússia.

Conclusões

“O curso inexorável do progresso”

Largo da Carioca, 1910 (Fonte: Museu Paranaense)

Quanto à atmosfera cosmopolita, no que era entendido como “o curso inexorável do progresso” conduzida pelo prefeito Pereira Passos, resultou no seguinte: em nove meses, seriam derrubados em torno de 600 edifícios e casas, para abrir a Avenida Central (hoje, Rio Branco). A ação, conhecida como “bota-abaixo”, obrigou parte da população desprovida de recursos a se mudar para os morros e a periferia.

Oswaldo Cruz, em 1907, de volta de uma exposição na Alemanha, onde fora premiado por sua obra de combate às doenças, sentiu os primeiros sintomas da enfermidade que o levaria à morte. Adiante surgiram problemas psíquicos. Os delírios se intensificaram. Conta-se que muitas vezes foi visto à noite vagando solitariamente pelas dependências do Instituto Manguinhos, que ajudara a projetar, em 1903, e que receberia o nome de Instituto Oswaldo Cruz em 1908. Em 1916, o cientista foi nomeado prefeito de Petrópolis. A cidade, envolvida em disputas políticas, não recebeu bem a nomeação. Oswaldo Cruz morreu, em 11 de fevereiro de 1917, quando acontecia uma passeata de protesto em frente à sua casa.

Historiadores, baseados em depoimentos da época, buscaram o motivo de uma repressão “brutal e intransigente”, dirigida contra indivíduos desvalidos socialmente. As pesquisas concluíram que a punição dos envolvidos não se baseou numa investigação daqueles que participaram efetivamente do motim. A polícia entendeu a situação como uma oportunidade para remover, da cidade reformada por Pereira Passos, aquelas pessoas vistas como indesejadas e potencialmente turbulentas.

O episódio, do ponto de vista das autoridades da época, era “um levante irracional, de gente rude, com mentes obsoletas”, que colocava em risco a ordem política e que deveria ser eliminada para salvar a República. Quando a revolta aconteceu, como um grito indignado, não teve partido, nem plataforma. Foi algo improvisado que não desejava poder e propagava-se sem estar vinculado a um grupo específico. Não havia um chefe geral, nem possuía um plano pré-estabelecido.

É uma visão simplista resumir a revolta como um movimento popular que teve como causa imediata a recusa em aceitar o método eficaz de combater a doença por meio da vacinação. Importa ressaltar que, além de expor a política autoritária e higienista, o movimento era, antes, um sinaleiro da tensão social existente numa cidade composta por indivíduos de origens variadas.

Por outro lado, o episódio deixou evidenciado que as camadas populares não toleravam “invasões truculentas na organização da sua sobrevivência e no interior das suas moradias”. Também não admitiriam a violação dos corpos de mulheres e crianças em nome de uma profilaxia que não entendiam muito bem.

Reflexões

Qual a cor da vitória?

Segundo Nicolau Sevcenko, “nunca se contou os mortos da Revolta da Vacina. Nem seria possível, pois muitos (...) foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos. Seriam inúmeros, centenas, milhares, mas é impossível avaliar quantos. Os massacres em geral não manifestam rigor pela precisão. (...) A matança coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado por algum padrão abstrato, que retira a humanidade das vítimas: uma seita, uma comunidade peculiar, uma facção política, uma cultura, uma etnia. Personificando nesse grupo assim circunscrito todo o mal e toda a ameaça à ordem das coisas, os executores representam a si mesmos como heróis redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o mundo. O preço a ser pago pela sua bravura é o peso do seu predomínio. A cor das bandeiras dos heróis é a mais variada, só o tom do sangue de suas vítimas permanece o mesmo ao longo da história”.

 

Jeanne Abi-Ramia é professora de História e consultora da série de TV O Mochileiro do Futuro.

 


Bibliografia:

Livros
ABI-RAMIA, Jeanne e SANDOVAL, Alexandre. Mestre do Tempo. Rio de Janeiro: MultiRio, 2011.
BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz. A construção de um mito na ciência brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1998.
FAUSTO, Boris. III o Brasil Republicano: Estrutura de Poder e Economia. São Paulo: DIFEL, 1989.
MOTTA, Marly Silva da. Rio, Cidade Capital. São Paulo: Zahar, 2004.
PENNA, Lincoln de Abreu. República Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999.
PRIORE, Mary e VENANCIO, Renato. Uma Breve História do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
SCHARCZ, Lilia Moritz (coord.). A Abertura para o Mundo 1889-1930. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
SEVCENKO, Nicolau (org.). A História da Vida Privada no Brasil República: da Belle Époque à Era do Rádio. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1999.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. - Mentes Insanas Em Corpos Rebeldes. Rio de Janeiro: Scipione, 2001.
SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

Sites
http://revistapesquisa.fapesp.br/2006/01/01/fazendo-rima-com-a-ciencia. Acesso em 03/03/2016.
http://portal.fiocruz.br/pt-br/node/473. Acesso em 06/03/2016.
http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil. Acesso em 07/03/2016.

 
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