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Rua Primeiro de Março: a partir de onde a cidade cresceu
SÉRIE
14 Setembro 2017 | Por Márcia Pimentel
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Rua Primeiro de Março. Foto Fernanda Fernandes, 2017

Quem passa hoje pela Primeiro de Março, em meio ao seu pesado trânsito e constantes engarrafamentos, costuma não se dar conta de que essa rua foi a grande protagonista do processo de crescimento do Rio de Janeiro por quase quatro séculos, nem que ela testemunhou alguns dos mais importantes fatos da História do Brasil – do tráfico negreiro às cerimônias de coroação de D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II. Imagina menos ainda que já foi chamada de Praia da Cidade, ou que, em suas elegantes confeitarias oitocentistas, os cariocas puderam experimentar os seus primeiros sorvetes.

São muitas histórias para contar sobre essa rua, cuja trajetória remonta aos tempos de fundação da cidade, quando Mem de Sá, o terceiro governador-geral do Brasil, escolheu o Morro do Castelo para instalar o núcleo de colonização das terras da Guanabara. Ali se fixaram os jesuítas, a Câmara e os funcionários d’El Rey designados para coordenar o povoamento. Não muito tempo depois, os beneditinos se alojaram no Morro de São Bento.

Margeando a praia, foi aberto um caminho conectando os dois morros. Nessa estradinha, foram edificados o fortim de Santa Cruz, erguido onde hoje fica a Igreja de Santa Cruz dos Militares, e a ermida de Nossa Senhora do Ó, entregue à ordem religiosa dos carmelitas pela Câmara em 1590. Ao lado da antiga capela, na década de 1610, os padres construíram um convento e, por causa de sua presença ali, a via passou a se chamar Rua Direita da Praia de Nossa Senhora do Monte do Carmo, ou simplesmente, Rua Direita. Só virou Primeiro de Março em 1875, para marcar a data (1/3/1870) em que o Brasil derrotou o Paraguai, após longo período de guerra, e que, coincidentemente, também era o dia de fundação da cidade (1/3/1565).

Com a presença da poderosa ordem dos carmelitas, a movimentação aumentou no caminho da praia. É bom lembrar que, naquela época, as ordens religiosas eram responsáveis pela maior parte dos referenciais da vida cotidiana, pois construíam e alugavam moradias, forneciam água, produziam e vendiam alimentos, abriam ruas, construíam chafarizes, emprestavam dinheiro, cuidavam da saúde, amparavam os desvalidos, marcavam as horas... Pois bem, além de abrigar os carmelitas, a Rua Direita ainda era o palco da movimentação portuária, porque os navios aportavam, embarcavam e desembarcavam suas mercadorias na Praia da Cidade.

PMarco4 O Rio de Janeiro e sua orla
Simulação da geografia da Primeiro de Março em 1580 e em 1750, já com várias construções e aterros. In: O Rio de Janeiro e Sua Orla: História, Projetos e Identidade Carioca, IPP, 2009, Creative Commons

Dizem vários historiadores que o desenvolvimento da via foi rápido. Nela, logo se instalaram numerosos colonizadores, além de trapiches, armazéns, açougue, mercado de escravos e, claro, a alfândega. No início dos anos 1600, era o principal ponto de comércio do Rio de Janeiro e havia se consolidado como eixo estruturador da cidade, a partir do qual foram abertas diversas travessas em direção ao interior.

Segundo Fânia Fridman, em seu livro Donos do Rio em Nome do Rei: uma História Fundiária da Cidade do Rio de Janeiro, nessa época, funcionários d’El Rey e a maior parte das instituições já haviam descido o Morro do Castelo para ocupar a Rua Direita ou alguma de suas travessas. Fixaram-se ali a Casa dos Contos (instituição fiscal que centralizava as contas públicas), a Câmara Municipal (em cujo prédio também ficava a cadeia) e o provedor da Fazenda Real, que teve a residência transformada em Casa dos Governadores em 1687.

Conforme vídeo sobre a Primeiro de Março da Rio TV Câmara, o lado da Rua Direita voltado para a praia começou a ser aterrado quando o então governador da capitania, Duarte Correia Vasqueanes, assinou, em 1646, um decreto permitindo a venda dos terrenos de marinha. O objetivo era fazer dinheiro para construir um forte na barra da Baía de Guanabara. Na verdade, aterros na várzea localizada entre os morros do Castelo e de São Bento vinham sendo feitos desde o início do povoamento da rua, pois a área era encharcada – o que também demandava obras de drenagem e de construção de valas para o escoamento da água.

Do incêndio à sede do poder real

Convento do Carmo
Convento do Carmo, hoje anexo de uma faculdade: a edificação mais antiga da rua. Foto Halley Pacheco de Oliveira, 2013, Wikimedia Commons

A Primeiro de Março praticamente não guarda resquícios arquitetônicos de sua fase seiscentista. A grande exceção à regra é o antigo Convento dos Carmelitas, que hoje funciona como anexo de uma instituição de ensino. Um dos fatores que contribuiu para isso foi o incêndio provocado pelo corsário francês Jean Duclerc, em 1710, que atingiu grande parte dos prédios e trapiches instalados na então Rua Direita. Muitos tiveram que ser reedificados e, com os recursos que passaram a circular a partir da descoberta do ouro em Minas Gerais, instituições e templos religiosos também foram reconstruídos para ficarem mais condizentes com a prosperidade dos anos 1700. Exemplos disso são a nova Casa dos Governadores, erguida entre 1738 e 1743, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, entre 1761 e 1785, com seu estilo barroco-rococó, e a Igreja de Santa Cruz dos Militares, entre 1780 e 1811, já com visível influência do neoclassicismo.

Quando o Rio foi elevado à capital da colônia em 1763, a importância da Rua Direita ficou ainda maior por abrigar a sede do Vice-Reinado do Brasil, mais precisamente a Casa dos Governadores, que virou Paço dos Vice-Reis. Também foi na Rua Direita, no prédio da Cadeia Velha, que Tiradentes ficou preso durante três anos, e de onde partiu para a forca. Mas o status do logradouro atingiu o ápice quando a família real aportou no Rio de Janeiro, em 1808, e transformou o Paço dos Vice-Reis em Paço Real.

Pompa, sorvetes, bondes e cultura

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A sagração de D. Pedro II como imperador do Brasil, na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, então Capela Imperial. Óleo sobre tela de Manuel de Araújo Porto-Alegre, detalhe, c. 1841, MHN, domínio público

Pouco tempo após sua chegada ao Rio de Janeiro, ainda em 1808, o príncipe D. João requisitou que a Igreja de Nossa Senhora do Carmo se transformasse em Capela Real e Catedral da Sé da cidade. Também confiscou o convento dos carmelitas – ao lado da igreja, para que nele fosse alojada a rainha, D. Maria I – e construiu um passadiço, interligando-o com o Paço Real, localizado bem em frente. Ainda transformou a Cadeia Velha na residência de seus empregados. Com a presença da família real e da Corte, o comércio da Rua Direita também se refinou. O pintor Jean-Baptiste Debret, que chegou ao Rio junto com a Missão Artística Francesa, em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, descreve-a como a “Rue Saint-Honorée do Rio de Janeiro... ocupada pelos ricos negociantes da cidade”, numa comparação com a via de comércio mais elegante de Paris.

Da série Esse Lugar Tem História

Em 6 de fevereiro de 1818, a rua testemunhou o seu maior dia de pompa: o da aclamação de D. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves. O palco do evento foi a Capela Real e, na comparação com as cerimônias de coroação de D. Pedro I e D. Pedro II – ocorridas no mesmo lugar, rebatizado de Capela Imperial –, a historiadora Jaqueline Hermann assim descreveu em O Rei da América: “Nenhuma comemoração igualou-se em deslumbramento às festas decorrentes da aclamação de D. João VI”. Também foi na mesma igreja que, em 1824, D. Pedro I jurou cumprir a primeira Constituição do Brasil.

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A Confeitaria Carceller, o primeiro estabelecimento a vender sorvetes no Rio, ficava em um dos sobrados ao lado da igreja. Foto Leuzinger, c. 1860, BN Digital, domínio público

Durante todo o século XIX, a Rua Direita manteve sua importância política e comercial. Testemunhou, em primeira mão, mudanças de costumes e eventos políticos que agitaram o conturbado parlamento brasileiro – em 1822, logo após a Independência, o prédio da Cadeia Velha foi transformado em Câmara Legislativa do jovem país. Na década de 1840, nas proximidades da Capela Imperial, instalou-se a elegante Confeitaria Carceller, que fez fama por ter sido o primeiro lugar a vender sorvetes no Rio de Janeiro. Em 1859, por ela passaram a circular os bondes puxados a burro da primeira linha de carris da cidade.

Nas primeiras décadas do século XX, já como Rua Primeiro de Março, novas e majestosas construções foram erguidas. Uma delas é o prédio onde funciona o Centro Cultural Banco do Brasil. Sua inauguração ocorreu em 1906, para abrigar a Associação Comercial. Virou sede do Banco do Brasil na década de 1920 e só deixou de sê-lo nos anos 1960, com a mudança da capital federal para Brasília. Em 1926, para acolher a Câmara Federal, foi inaugurado o Palácio Tiradentes, construído no mesmo terreno da Cadeia Velha, demolida em 1922, na mesma data em que se comemorava o centenário da instalação da primeira Câmara Legislativa do país.

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A Primeiro de Março em 1908. Foto João Francisco Correia, Coleção Fichel David Fardel, domínio público

Hoje, a Primeiro de Março integra o Corredor Cultural do Centro da Cidade e tem vários prédios tombados pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico (Iphan), incluindo a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, construída no século XVIII pela irmandade de devotos da virgem. É um dos templos mais pomposos da cidade, além de ser uma das construções mais representativas do rococó carioca, tendo Mestre Valentim como o artífice das talhas douradas da Capela do Noviciado.

A Igreja da Ordem Terceira fica ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, também tombada pelo Iphan e transformada em sítio arqueológico em 2008, durante as obras de restauração do templo, por ocasião das comemorações do bicentenário da chegada da família real ao Rio de Janeiro. Sob ela, descobriram cinco construções diferentes e vestígios do mangue que ali ficava, quando a Primeiro de Março ainda era a Praia da Cidade.

 
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