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Beleza e coragem marcam a Educação de Jovens e Adultos
06 Dezembro 2017 | Por Sandra Machado
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Alunos reunidos na porta do Creja (Fonte: Arquivo pessoal)

O Centro Municipal de Referência de Educação de Jovens e Adultos (Creja) fica no número 74 da Rua da Conceição, no Centro, e, à primeira vista, poderia passar como apenas mais um sobrado que sobreviveu à abertura da Avenida Presidente Vargas. Há 13 anos, a escola-piloto da Rede Pública Municipal de Ensino tem a grande responsabilidade de inovar os métodos de escolarização do Ensino Fundamental, que oferece, na prática, a cerca de 400 alunos, para que cheguem testados e aprovados às 130 escolas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do município. No ambiente acolhedor, ninguém fica de fora: há de pequenos comerciantes a ambulantes; de adolescentes abrigados e chefes de família a avós; de moradores de rua a refugiados; de trabalhadores embarcados a esportistas, todos recebidos com a mesma generosidade.  

Infraestrutura inclusiva 

Grupo de alunos do Peja em visita ao Theatro Municipal, em 2017 (Fonte: Arquivo pessoal)

No Creja, são oferecidos o ensino semipresencial e a Educação a Distância (EaD). As aulas semipresenciais acontecem de segunda a sexta-feira, em dois turnos pela manhã (7h30 às 9h30 e 9h45 às 11h45), e dois turnos à noite (17h45 às 19h45 e 20h às 22h), com seis turmas em cada um, totalizando 24. Em busca de mais qualidade, existe a limitação de 13 alunos por grupo. Já a Educação a Distância (EaD), iniciada em 2012, se destina exclusivamente àqueles a quem faltou concluir o Ensino Fundamental, com conteúdo de 8º e de 9º ano oferecido em três meses de curso, por meio da plataforma Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), a partir de material produzido pelos professores do Creja. Tutorias, avaliações e uso do laboratório de informática na unidade escolar estão acessíveis diariamente entre as 8h e as 19h. Além do Creja, a única outra unidade escolar exclusiva para o público-alvo é o Centro de Educação de Jovens e Adultos da Maré (Ceja). 

Para entender melhor as especificidades da EJA, o Portal MultiRio entrevistou Fátima Valente, que começou como supervisora educacional no Creja em 2010 e, dois anos depois, passou a diretora, cargo que ocupa atualmente.

Portal MultiRio – Existem vagas ociosas no curso semipresencial?

Fátima Valente – Vaga ociosa não tem. O que existe é oscilação de frequência, por adoecimento e demanda de trabalho, entre outros motivos. O aluno permanece com a matrícula aberta, mas tem que cumprir o mesmo que se exige num curso presencial, com tolerância de 25% de faltas. Mesmo assim, o Conselho de Classe analisa caso a caso.

PM – Pode falar um pouco mais sobre a EaD?

FV – O aluno tem uma pré-inscrição presencial e passa por uma prova e uma entrevista. Analisamos seu percurso escolar e a prática profissional dele. Se coincidir com um bloco de aprendizagem de 8º/9º ano que esteja se iniciando, ele entra. Por diferentes motivos, é comum os alunos não terem os documentos de comprovação de escolaridade anterior. O secretário de Educação, César Benjamin, vive lembrando a questão da violência, e não podemos esquecer que o Peja noturno vai até as 22h. Também por esse motivo a modalidade EaD foi criada.

PM – Qual a idade do aluno mais velho? E do mais jovem?

FV – As idades vão de 16 a 86 anos. De fato, no Ensino Fundamental, a EJA tem uma grande diversidade de público. Nas escolas da Rede, nos turnos da manhã e tarde, jovens e adultos convivem, no mesmo espaço, com as crianças do Ensino Fundamental II, do 6º ao 9º ano, e têm aulas de quatro horas de duração. No curso semipresencial, como o nosso, são duas horas de aula mais duas de atividades não presenciais, em casa ou aqui, e também em atividades culturais. Temos o privilégio de uma localização central, o que facilita a ida a locais como Theatro Municipal, Centro Cultural Banco do Brasil, Centro Cultural da Caixa e vários outros. Recebemos ingressos das secretarias municipal e estadual de Cultura, que trabalham projetos de formação de plateia. No Creja, temos o Peja I, que vai da alfabetização até o 5º ano, e o Peja II, do 6º ao 9º ano, divididos em blocos de aprendizagem, que são unidades de progressão trimestrais. No Peja II, são oferecidas cinco disciplinas – Língua Portuguesa, Matemática, História/Geografia, Ciências e Linguagens Artísticas – teatro, artes visuais, música – ou Língua Estrangeira – no nosso caso, inglês, mas poderia ser espanhol. Além da agenda cultural temos, também, atividades de integração, em que a tarefa é desenvolver um projeto. Aprovação ou reprovação acontecem a cada bloco. Costumo dizer que, aqui, prezamos o respeito ao itinerário pessoal, procurando aliar os conteúdos aos significados da vida de cada sujeito. Quem faz o ano letivo é o aluno.

PM – Qual a porcentagem de adolescentes nas turmas do Creja?

FV – Isso varia de turma para turma. Mas fazemos uma forcinha para que eles fiquem concentrados no turno das 9h45, priorizando a escola no lugar do trabalho, e também porque me preocupo com o deslocamento deles no horário noturno. Embora a legislação federal caracterize que a partir dos 15 anos já seja permitido frequentar o Peja, no Rio de Janeiro a gente considera uma excepcionalidade. Como metrópole, o Rio tem uma complexidade em relação ao alunado. Mas é preciso que a EJA não seja encarada como instrumento de correção de fluxo escolar. Algumas vezes, o que existe é um conflito entre o projeto de vida da juventude e o que o aluno encontra na escola regular.

PM – Em que medida as práticas político-pedagógicas precisam ser adaptadas para o público do Peja?

FV – O trabalho realizado aqui permite flexibilidade porque estamos ligados ao nível central, à Gerência de Educação de Jovens e Adultos (Geja), em vez de a uma Coordenadoria Regional de Educação (CRE). Com isso, experimentamos propostas que podem, ou não, num segundo momento, ser ampliadas para toda a Rede Municipal. Conceitos aplicados a uma dada faixa etária e modalidade não podem ser transpostos na íntegra para a EJA, é realmente outra forma pedagógica de fazer educação. As práticas político-pedagógicas devem ser produzidas especificamente para esse público, atendendo as suas especificidades, em vista de ser composto por um público jovem, adulto e idoso. É preciso levar em conta a experiência de vida da pessoa. Mas esse modelo de escola tem limitadores, como a quantidade de alunos que conseguimos atender, por exemplo. O Ceja-Maré, que chamamos de escola-irmã, conta com o curso semipresencial e vai ter EaD a partir de 2018. O Peja de bairro atende a comunidade local, enquanto o Ceja-Maré e o Creja atendem o público de toda a cidade.

PM – Como o Creja lida com o problema do abandono e da evasão escolar?

FV – As pesquisas que se faz sobre evasão na EJA não falam sobre recondução, que é quando o aluno interrompe as aulas e, depois, retorna. Por diversos motivos, existem alguns que se afastam e voltam à escola três vezes no mesmo ano. Nesses casos, costumamos entrar em contato com cada um, para saber o que está havendo, embora não tenhamos ninguém responsável por cuidar exclusivamente disso. É importante lembrar que o valor do trabalho para o público da EJA é muito grande e pesa bastante na sobrevivência da família.

PM – Como são as histórias de vida destes alunos?

FV – São as mais variadas. Há aqueles que nunca ou pouco tiveram oportunidade de estudar, em vista de precisarem trabalhar desde muito jovens. Há aqueles que vieram marcados pelos discursos do fracasso escolar, e há aqueles que buscam o Peja por outras razões, para ampliar suas oportunidades. Porém, estes possuem algum tipo de negócio próprio ou colocação estável no mercado de trabalho. A experiência de vida destas pessoas faz com que o analfabetismo funcional tenha outra conotação na EJA: os mais velhos desenvolveram mecanismos de interpretar o mundo, apesar da deficiência na leitura e na escrita, aprendendo a se virar. As pessoas que estão aqui sabem o que querem.

PM – Que grau de entusiasmo é percebido quando eles chegam para estudar?

FV – Em geral, a oportunidade de voltar a estudar é vista por eles com grande entusiasmo. O quantitativo feminino é muito grande. As mulheres têm uma responsabilidade na educação dos seus filhos e tendem a procurar retornar em função da família. Muitas cuidam de netos e não conseguiam acompanhar o desenvolvimento deles, ajudando nas tarefas escolares. Algumas trabalham em salões de beleza, lojas ou empresas, aqui mesmo no Centro. Mas também temos alunos que vêm de bairros distantes, como Inhoaíba.

PM – Qual a importância da sensibilização artística do olhar?

FV – Nossos alunos são o que se pode chamar de “despossuídos culturais”. Mas já se sabe que existe um grande potencial educativo no contato com a arte, e essa é uma proposta que a escola tem a oferecer. Além de sair com os alunos, trazemos grupos de teatro e musicistas da Escola de Música Villa-Lobos como projeto pedagógico integrado ao cotidiano. Nossos alunos chegam sem essa tradição de consumo de bens culturais porque a principal preocupação de cada família é sobreviver. Para essas pessoas, ir à igreja virou, também, uma forma de lazer, o que conta como um espaço de cultura. Pelo contato com a arte, todos nós ampliamos nosso horizonte de mundo, e as limitações impostas pela condição social não deveriam restringir esse acesso. A cultura é, sim, muito transformadora. Espaços culturais dão empoderamento e mudam o olhar estético não só do sujeito, mas de quem habita na órbita dessa pessoa. Por isso mesmo, disponibilizamos sempre ingressos para os familiares. Fazemos empréstimo de livros a fim de que os alunos leiam para seus filhos. A escola para o aluno adulto não é só o lugar de aprender Língua Portuguesa e Matemática, ela inclui mais generosidade para com toda a família. Temos, inclusive, rodas de conversa com alunos que são pais. Não se trata exclusivamente da escola, mas de um tripé formado pelo aumento da escolaridade, somado à cultura e ao trabalho.

PM – Existe algum apoio no curso no sentido de profissionalizar estes alunos?

FV – Apesar de não haver uma formação profissionalizante, há diversas iniciativas – encontros, palestras, oficinas – para a participação dos alunos, cujo objetivo é instigar uma reflexão e uma preparação para o mercado de trabalho. Temos parcerias com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e com o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) para atividades de viés profissional. Há pouco tempo, um profissional de recursos humanos veio até aqui falar sobre como se sair bem numa entrevista de emprego. Organizamos cursos pequenos, como o de fotografia, não no sentido de certificar, mas de qualificar.

PM – O Creja consegue acompanhar a carreira profissional dos ex-alunos?

FV – Às vezes, sim. Tivemos um aluno chamado Flávio, morador do Morro da Providência, que hoje faz faculdade de Educação Física na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Quando chegou, ele era do tipo calado e tinha dificuldade de fazer um discurso articulado, mas era mestre de capoeira. Aqui a gente começa a buscar os talentos dos alunos e ele deu, inclusive, uma oficina num dos Encontros de Alunos. Depois, foi eleito representante de turma e, um dia, durante o Conselho de Classe, fez um depoimento incrível. Ele disse: “hoje a polícia entrou no morro, estou vindo da delegacia. Em outra situação, eu teria partido para o enfrentamento. Mas, desta vez, me lembrei da escola, fui mais inteligente e consegui reverter o problema”. Com o tempo, passou a levar os filhos aos espaços culturais da cidade. Temos uma parceria com o Serviço Social da Indústria (Sesi), onde também existe EJA, e divulgamos os editais de admissão. Esse aluno fez o Ensino Médio lá, passou no Enem, ganhou bolsa para estudar Sociologia na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), mas acabou optando pela UFRJ. Ele foi muito disciplinado e conseguiu romper com o ciclo familiar da pobreza. No geral, nos preocupamos com a continuidade dos estudos deles, indicamos que procurem a EJA nas escolas estaduais, orientamos sobre o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), mas a relação não pode ser de pena. O que acontece é um permanente resgate, uma estratégia inclusiva, que realizamos acompanhando por telefone e WhatsApp, ou pedindo ajuda do representante de turma. Não tem um método específico para fazer isso.

PM – Que papel exerce a afetividade no processo de escolarização de jovens e adultos?

FV – Acredito que seja o da cumplicidade, porque dividimos os problemas. Ex-alunos e até funcionários da prefeitura, que são amigos, vêm fazer trabalho voluntário aqui. Ajudam nas tarefas de secretaria, ligam para as pessoas, ou são monitores. Todo mês temos um grupo de roda de leitura, que conta como atividade de agenda cultural. Também tem o trabalho voluntário de estagiários, alunos do curso de Pedagogia de várias universidades, que dão aula de reforço. A afetividade é uma forma de linguagem e passa pelo respeito ao outro, que deve ser um compromisso permanente dos professores. Temos alunos moradores de rua, em geral homens, muitos com problemas psiquiátricos, e que vêm para cá encaminhados pelo trabalho de acolhimento da prefeitura, que acaba entrando na questão da escolaridade. A gente tem que ouvir essas pessoas, invisíveis para o resto do mundo.

PM – Os alunos sofrem algum tipo de estigma social?

FV – O aluno, por insegurança, se olha com preconceito, dizendo que não é capaz. Na família, depois de chagarem à universidade, alguns filhos também discriminam. Mas também acontece de o cônjuge estimular o crescimento pessoal do outro, ou patrões trazerem seus empregados para o curso de EaD. Há empresas que têm uma política de ascensão profissional, mas, em geral, o que acontece é o inverso: o aluno acaba saindo da escola porque o empregador não tem tolerância com atraso de horário. Ocorre que o aluno da EJA é um público estereotipado. Ele sabe que escola faz falta, mas também vive este estereótipo e diz: “tenho a cabeça dura, não dou para os estudos”. São diversos problemas emocionais... Outra luta é com as universidades, que são falhas porque não oferecem disciplinas da EJA. Tampouco existe concurso direcionado para a EJA. Na prática, o professor tem que se identificar com esse perfil de aluno e procurar a formação continuada que é oferecida pela Gerência de Educação de Jovens e Adultos (Geja). Às sextas-feiras, acontecem os centros de estudo em todo Peja. É nesse espaço que as formações ocorrem. Além de apoiar a Geja na formação dos docentes, o Creja recebe educadores de outras prefeituras interessados em conhecer sua proposta política pedagógica. A presença da EJA na educação básica possibilita sua participação no Fundeb, fundamental para sua manutenção nas redes públicas municipais.

PM – Como se pode fazer chegar a potenciais alunos, muitos deles analfabetos funcionais, as informações de divulgação do Peja?

FV – Por meio de uma intensa divulgação em órgãos públicos por onde eles circulam e ainda por internet, redes sociais, rádio, televisão e em meios de transporte de uso coletivo – ônibus, trens, metrôs e barcas. Há cartazes de divulgação permanente que as CREs mandam para escolas e creches e também são enviados à Secretaria Municipal de Saúde ou colocados nas estações do metrô. O ideal seria manter uma campanha regular na grande imprensa, como é feito no combate ao Aedes aegypti. O poder transformador da escolarização é incrível. Quando se formam, os alunos costumam dizer uma frase, que faz valer todo o sacrifício: “agora sou gente porque eu leio o mundo”.

 
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