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Por um lá maior
09 Agosto 2018 | Por Christiana Tavares e Ivan Kasahara
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*Reportagem publicada originalmente na Revista Carioca de Educação Pública nº 5

 

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Imagem: GEA/ MultiRio

Até o início do século XX, antes de o sistema de temperamento igual1 predominar na música ocidental, a sonoridade e as características próprias de cada tom musical eram muito mais evidentes. Sendo assim, músicos e estudiosos associavam emoções e qualidades a cada tom, dando-lhes personalidades distintas que eram levadas em conta no momento de se compor uma obra.

Uma das descrições mais célebres desses perfis foi feita pelo poeta e compositor alemão Christian Schubart (1739-1791), que caracterizou o lá maior como um tom apropriado para declarações de amor, expressões de satisfação ou de esperança em rever alguém amado e dotado de uma alegria juvenil2. Já o pianista e compositor austríaco Ernst Pauer (1826-1905) definiu o mesmo tom como "cheio de confiança e esperança, radiante de amor e evocando uma alegria simples e genuína. É o tom mais apropriado para expressar a sinceridade de sentimentos3."

O lá maior soa, então, adequado para se falar sobre o programa Orquestra nas Escolas, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação desde 2017 e que pretende formar 80 mil alunos instrumentistas até 2020. A alegria juvenil e a esperança não estão presentes apenas nos cerca de 11 mil estudantes de 10 a 17 anos que já integram a iniciativa – a expectativa é de chegar a 35 mil ao final deste ano. Elas também são expressas pela coordenadora do programa, Moana Martins, e o maestro Anderson Alves, regente da Orquestra Sinfônica Juvenil Carioca (OSJC). A OSJC é apenas um dos braços do Orquestra nas Escolas, embora talvez o mais vistoso – reúne, atualmente, os cerca de 280 alunos mais talentosos e experientes. Assim como está ocorrendo com os jovens participantes do programa, Moana e Anderson também tiveram suas trajetórias de vida marcadas pela música desde cedo.

Moana nasceu em Salvador e passou a infância na pequena cidade baiana de Coaraci, onde teve seu primeiro contato com a música. "Eu nasci para a música dentro da escola, quando estava na 6ª série, em um projeto cultural que oferecia aulas de piano no contraturno. Durante seis meses, aprendi apenas teoria musical, só olhava para o piano. Lembro como se fosse hoje o dia em que Tia Elza, minha primeira professora, disse que eu iria finalmente tocar". Desde então, Moana mudou de cidade e de estado, mas seguiu junto à música. É bacharel em piano e mestranda na área de etnomusicologia.

O carioca Anderson começou a estudar piano mais cedo, por volta dos 7 anos, mas desistiu poucos meses depois por achar difícil. No entanto, a vocação musical voltou a se manifestar na adolescência ao entrar para o coro de uma igreja. Voltou a estudar piano e se interessou por regência coral, formando-se regente pelo Conservatório Brasileiro de Música. "Comecei a trabalhar com regência orquestral relativamente cedo, com 22 anos. Em geral, os músicos começam a atuar nessa área depois dos 30", explica.

Escolados por suas experiências, os dois sabem da importância de apresentar o estudo da música de maneira atraente e acessível para a geração atual. "Nossa metodologia, que ainda está em construção, é muito prática. Ela coloca o aluno no centro e se baseia no repertório e nas culminâncias", diz Moana. Atualmente, os participantes ensaiam duas vezes por semana, num total de seis horas. As aulas são compostas por momentos de prática individual, nos quais cada um toca sozinho, e prática de conjunto. "É claro que eles estudam teoria e percepção musical, mas tudo de forma muito dinâmica. A cada semestre nós escolhemos um tema, montamos um repertório em torno dele e toda a prática é baseada nisso, tendo como meta as apresentações. Dessa forma, as crianças têm um suporte, elas conseguem ver o sentido do que estão fazendo. Todo mundo, inclusive os adultos, precisa ter clareza de objetivos para que haja estímulo em fazer. E as apresentações são o momento do reconhecimento. Não tem ninguém que não entenda a importância de ser reconhecido".

Moana conta que o momento mais marcante enquanto ainda era aluna de piano foi quando aprendeu a tocar Asa Branca e Parabéns pra Você. "Sei que isso pode parecer raso para alguns educadores, mas, na prática, a criança quer tocar e quer viver algo que faça sentido para ela. Não adianta fazer sentido só para o professor. Se o aluno não for o centro da ação, ela tende a ser nula."

 

Desafios

O lá maior é um tom acidentado, com três sustenidos em sua escala (dó, fá e sol), assim como não poderia deixar de ter acidentes e desafios um programa implementado em uma rede que envolve mais de 1.500 escolas e cerca de 650 mil crianças e adolescentes. Segundo Moana, o ideal seria que cada uma das escolas contasse com um time de professores de Música: um dedicado aos instrumentos de corda, outro aos de sopro, outro ao piano etc. Como esse cenário é impossível a curto e médio prazo, a solução encontrada foi o modelo das escolas-polo, unidades com estrutura e localização favoráveis para abrigar os ensaios, realizados sempre nas tardes de quarta e sexta-feira. Cada uma delas tem de três a sete professores de Música, responsáveis por instrumentos de diferentes naipes. O ano anterior terminou com dez escolas-polo e a previsão é que antes do fim de 2018 sejam 45 espalhadas pela cidade. "O que propomos é dar oportunidade a quem quiser fazer parte. Não há condições, no momento, de oferecer o programa a todos os alunos, mas ninguém que deseja participar fica de fora", esclarece Moana.

No momento, integram o Orquestra nas Escolas 410 professores de Música da Rede Municipal, que se dividem pelos polos. Anderson é responsável pelos ensaios da OSJC, cujos integrantes se reúnem às sextas-feiras na Cidade das Artes. A orquestra estreou em outubro de 2017, com um programa que homenageou a música brasileira e, em especial, Tom Jobim. Em dezembro, o repertório girou em torno de músicas natalinas. No concerto de abertura deste ano, a homenagem foi ao grupo inglês The Beatles. As próximas apresentações serão inspiradas em grandes clássicos (Beethoven, Mozart, Stravinski e Villa-Lobos) e em trilhas sonoras famosas de filmes.

Além da OSJC, o programa vem formando outros grupos para que, à medida que os jovens evoluam, todos tenham a oportunidade de se apresentar. Já existem orquestras de jazz e de flautas, grupos de choro, cameratas de violões e corais. "Nossa função à frente de uma orquestra é a de inspirar o aluno a melhorar a cada dia, a pesquisar e a praticar", opina Anderson.

 

Inspirações e parcerias

Imagem: GEA/ MultiRio

O russo Alexander Scriabin (1871-1915), um dos mais influentes compositores modernos, desenvolveu um sistema sinestésico no qual associava tons musicais a cores4. Para ele, o lá maior corresponderia ao verde, coloração com a qual o Orquestra nas Escolas também está afinado. A primeira ação do programa na Rede Municipal foi a organização de um conjunto inusitado na E.M. Coelho Neto. "Não tínhamos nenhum violino, mas música e vontade nós tínhamos", recorda Moana, que montou uma orquestra a partir do reaproveitamento de garrafas usadas como instrumentos musicais. 

A ideia de fazer música com instrumentos não convencionais continua, aproximando o programa do conceito de sustentabilidade – ambiental e financeira. "Estamos desenvolvendo um ‘baldecelo', um violoncelo feito a partir de um balde plástico, e um violino de PVC. Isso tem a ver com a redução de custos e também com a ressignificação do uso dos materiais. Acho muito interessante pensar música e educação ambiental de maneira conjunta", diz a coordenadora.

O violino de PVC é fruto de uma parceria com os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba), iniciativa idealizada pelo maestro Ricardo Castro, criada pelo governo baiano em 2007 e uma das principais inspirações do Orquestra nas Escolas. Moana, inclusive, foi responsável pela implantação de uma das células do Neojiba, em Trancoso, no município baiano de Porto Seguro. "O Neojiba é uma referência para nós porque articula parcerias com vários setores da sociedade. Ele exporta sua tecnologia educacional para várias cidades do Brasil e desejamos trabalhar juntos".

Outra inspiração para o Orquestra nas Escolas é o projeto Som+Eu, do qual a própria Moana é uma das criadoras e Anderson ainda faz parte, como maestro e coordenador pedagógico e musical. Aliás, mais do que inspirar, o Som+Eu é a instituição executora do programa da SME. Ele começou no Morro da Providência, em 2011, com as mesmas bases do que hoje é oferecido na Rede Municipal: aulas de música e formação de grupos e orquestras para crianças e adolescentes. Atualmente, além da sede original, o projeto se expandiu para Santa Cruz e Duque de Caxias. "Já não sou coordenadora de lá há dois anos, mas o Som+Eu segue no meu coração. Sempre namoramos a Rede Municipal de Educação, tivemos ações em diversas escolas da 1ª CRE, como na E.M. Vicente Licínio Cardoso, na E.M. Francisco Benjamin Galloti e na E.M. Darcy Vargas. Desde o início, entendemos a importância da simbiose entre comunidade, escola e organização da sociedade civil", explica Moana.

Anderson Alves cita mais uma referência que o inspira como maestro da OSJC. "Eu penso muito no canto orfeônico de Villa-Lobos, que chegou a reger apresentações de coros com dezenas de milhares de estudantes", revela. No início da década de 1930, Heitor Villa-Lobos se tornou responsável por comandar a recém-implantada política de educação musical, baseada no canto coral, no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Ao longo do Estado Novo, essa política se espalhou pelo país e perdurou por décadas, sendo, ainda hoje, considerada uma das ações mais bem-sucedidas de educação musical na história brasileira.

Ecos do canto orfeônico de Villa-Lobos ressoaram por muito tempo na Rede Municipal. Para Moana, isso fica evidente na vocação artística das escolas públicas cariocas. "Essa Rede tem uma visão ampliada sobre a formação humana e artística do aluno. Ela instituiu núcleos de arte ainda em 1993. Quando a música voltou a ser obrigatória no currículo escolar, em 2008, a Rede já tinha mais de 350 professores de música, sem contar os de teatro e os de artes plásticas", elogia.

Integrar as diferentes experiências artísticas das escolas municipais é uma busca constante do Orquestra nas Escolas, como ficou claro durante os concertos realizados na Cidade das Artes – o de estreia e o em homenagem aos Beatles –, que contaram com performances de teatro, dança e artes visuais. "Eu procuro conhecer de perto todas as iniciativas de professores de arte. Não podemos perder a chance de deixar as pessoas extasiadas e a união das artes, cada uma com sua essência, faz isso muito bem", acredita Moana.

 

Horizonte

O violinista inglês Peter Cropper (1945-2015), que liderou o Quarteto de Cordas Lindsay – responsável por célebres gravações de obras de Beethoven, Haydn, Mozart, entre outros –, definiu o lá maior como o tom que explora ao máximo a sonoridade do violino5. Explorar ao máximo não só a sonoridade dos instrumentos, mas, principalmente, a potência dos alunos é o principal objetivo do Orquestra nas Escolas.

"Tocar em orquestra exige uma série de atitudes que mudam a forma de pensar: disciplina com o horário, comportamento, dedicação ao estudo do instrumento. Isso acaba se refletindo na vida social e acadêmica", diz Anderson, que também é compositor. "Para mim, a música é uma inspiração diária e contínua. A cada dia descubro uma nova composição".

Para Moana, a música faz transcender. "Eu me reconheço o tempo inteiro nesses meninos e meninas. É muito bom apreciar uma música. No entanto, é algo mágico fazer do que se está ouvindo a sua própria música, produzir esse som. Quando tocamos uma música da qual gostamos, entramos em conexão com o mundo espiritual, é algo extraordinário. E desejo que esse trabalho feito em conjunto com todos os professores, não só os de Música, ajude a colocar a escola pública no lugar em que merece, de muito respeito".

Ao proporcionar a sensibilização e a fruição artística a crianças e adolescentes, o programa Orquestra nas Escolas lhes permite o desenvolvimento de diversas qualidades humanas. E, nesse ponto, incorre em mais uma afinidade com o "lá maior". Mas, dessa vez, não com o tom musical, e sim com a ideia de um futuro cheio de perspectivas; um horizonte de possibilidades.

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1 Sistema de afinação musical que privilegia as oitavas. Em outros modos de temperamento, por exemplo, um dó sustenido não soa da mesma forma que um ré bemol. Para ouvir exemplos, acesse http://wmich.edu/mus-theo/groven/compare.html

2 STEBLIN, Rita. A History of Key Characteristics in the Eighteenth and Early Nineteenth Centuries. University of Rochester Press, 1996.

3 PAUER, Ernst. The Elements of the Beautiful in Music. Novello, 1876.

4 ISHIGURO, Maho A. The affective properties of keys in instrumental music from the late nineteenth and early twentieth centuries. Disponível em: https://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com.br/&httpsredir=1&article=1561&context=theses

5 Afirmação feita em referência à Sonata a Kreutzer, de Beethoven. Ouça um trecho da obra em https://en.wikipedia.org/wiki/File:Beethoven_-_opus47-3_03.ogg

 
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