A cada ano, 18 de maio é marcado pelo Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, que visa é conscientizar a sociedade e a reafirmar a responsabilidade de todos em garantir os direitos de crianças e adolescentes. Nesse cenário, a escola tem papel fundamental: na prevenção, na identificação e no combate ao abuso sexual infantil.
No período de 2011 a 2017, dentre os casos de violência sexual notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), 31,5% foram contra crianças (entre 0 e 9 anos) e 45% contra adolescentes (entre 10 e 19 anos), totalizando 76,5% dos casos nessas duas fases da vida. Ao se comparar os anos de 2011 e 2017, observou-se um aumento de 64,4% e 83,2% das notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, respectivamente. Os dados são do Boletim Epidemiológico 27, do Ministério da Saúde, publicado em junho de 2018.
Por dentro dos conceitos
Segundo a cartilha educativa do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (Secretaria de Direitos Humanos) e o Guia de referência construindo uma cultura de prevenção à violência sexual (Childhood Brasil), a violência sexual é a violação dos direitos sexuais, no sentido de abusar ou explorar o corpo e a sexualidade de crianças e de adolescentes.
O abuso sexual é descrito como toda situação em que uma criança ou um adolescente é utilizado para gratificação sexual de pessoas, geralmente mais velhas. Já a exploração sexual é caracterizada pela relação sexual de uma criança ou adolescente com adultos, mediada pelo pagamento em dinheiro ou por qualquer outro benefício.
Como identificar sinais de que o aluno esteja passando por uma situação de violência sexual
Segundo Jean Von Hohendorff, doutor em Psicologia e professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Imed, no Rio Grande do Sul, é preciso levar em consideração que não existe uma síndrome, um conjunto de sintomas que seja específico da violência sexual, e que nem todas as vítimas apresentam os mesmos sinais.
No entanto, na escola, alguns sinais comportamentais, emocionais ou cognitivos acabam ficando evidentes, o que destaca a importância de o professor estar atento a quaisquer mudanças no comportamento da criança. “Mudanças repentinas indicam que há algo errado, que pode ser violência sexual ou outra situação. A criança ou o adolescente pode ter comportamento mais isolado, dificuldade de relação com colegas, retraimento e demonstrar medo de uma figura adulta, do próprio agressor ou de pessoas que o lembrem. Nos casos de violência sexual com contato físico, também pode ter comportamento hipersexualizado”, descreve o especialista, ressaltando que a sexualidade da criança é diferente da do adulto, e gira em torno do conhecimento do próprio corpo.
“Quando a sexualidade se apresenta ‘mais adultizada’ é um sinal de alerta. O professor não pode partir do pressuposto de que uma criança é ‘sexualizada de um modo pejorativo’. Eles devem tomar o cuidado de, no momento em que a criança apresentar comportamento hipersexualizado, não ter uma postura de julgamento moral, mas sim de entendimento”, orienta.
Outra questão muito frequente nas escolas, segundo Von Hohendorff, é a queda no rendimento escolar. “Crianças que passam por situações traumáticas tendem a ter uma memória persistente dessa situação, lembrando-se do ocorrido mesmo quando não querem. Parecem, então, distraídas e desatentas, não conseguem voltar a atenção para outra situação e se concentrar no conteúdo de sala de aula”, acrescenta, dizendo que ansiedade, raiva e tristeza também podem ser sentimentos comuns.
O papel da escola na prevenção ao abuso sexual: o que pode ser feito
Na palestra Infância, gênero, sexualidade e educação infantil, promovida em abril de 2018 pela Creche Fiocruz e pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Jane Felipe de Souza, psicóloga, doutora em Educação e especialista nas áreas de Sexualidade e Relações de Gênero, reforçou que é tarefa da família e da escola discutir questões relacionadas a gênero e sexualidade.
“Por princípio, a escola é um local de produção e circulação do conhecimento. Temos que tratar de todos os assuntos, de todas as dúvidas dos alunos; olhar para o que as crianças trazem como demanda – por mais difícil que seja –, e discutir da maneira mais competente possível. É preciso ensinar as crianças que algumas condutas dos adultos não devem ser aceitas, configuram abuso; que corpos não estão disponíveis. A criança não entende o que acontece numa situação de abuso porque isso não foi explicado em casa. E ela pode até sentir prazer no abuso, porque, em geral, é algo mais sedutor do que violento. Falam: ‘Você é especial para mim; foi escolhida’, e criam pactos de silêncio de maneira perversa”, diz Jane Felipe.
Para Jean Von Hohendorff, antes de uma intervenção preventiva é importante que os professores tenham clareza sobre os tipos de violência contra a criança. “A melhor ferramenta de prevenção, inicialmente, é a informação dos professores. Em um segundo momento, trabalhar com os alunos os seus direitos, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente. As crianças precisam saber que têm direitos e o que fazer quando esses direitos são ameaçados”, explica o psicólogo, observando que a Lei Nº 13.010, de junho de 2014, conhecida como Lei Menino Bernardo, prevê a promoção de campanhas educativas permanentes para a divulgação desses direitos.
Outra ferramenta protetiva nas escolas, comprovada por estudos, segundo Von Hohendorff, é a educação sexual. “Quando falamos nisso, há uma grande polêmica. As pessoas não entendem muito bem o que é, nem mesmo alguns professores. Não se trata de ensinar as crianças a fazer sexo, pelo contrário. Algumas pesquisas indicam que a educação sexual em escolas retarda o inicio da vida sexual ativa e previne a gravidez na adolescência. A ideia é trabalhar noções de conhecimento corporal, mudanças pelas quais o corpo passa, e de higiene; ensinar que as pessoas não podem tocar no corpo delas se elas não quiserem, e que elas podem dizer não; diferenciar toques bons de ruins e instruí-las sobre o que fazer diante de um toque ruim”, diz Jean, comentando que muitos casos de violência vêm à tona na escola quando lá são desenvolvidos trabalhos de educação sexual, e o aluno percebe que o que está sendo feito com ele, muitas vezes dentro de casa, é inadequado.
Autor do livro Violência sexual contra meninos - teoria e intervenção (Juruá Editora), ao lado de Luísa Habigzang e Silvia Koller, Jean destaca a importância de a escola trabalhar, também, questões de gênero.
“Quando se pensa em uma situação de violência, é preciso avaliar o impacto macrossocial de estruturas como o machismo e o sexismo. Por um lado, impactam no sentido de o homem ser visto apenas como agressor – quando, em alguns casos, podemos ter mulheres agressoras; além disso, muitas vezes o menino ou até mesmo o homem não procura ajuda por causa de papéis atribuídos ao gênero masculino, porque acreditam que ser vítima de violência não combina com o papel masculino; e até o fato de procurar ajuda, nessa mesma lógica, é algo não permitido para eles”, pontua.
“Por isso, é necessário trabalhar e problematizar essa temática nas escolas, para que a sociedade não continue repetindo um padrão que está na gênese da violência contra a mulher: de que o homem tem poder sobre ela e que pode resolver as coisas baseando-se na violência; afinal, ele é homem.”
Como abordar a criança e encaminhar o caso
Segundo Von Hohendorff, o professor deve estar atento aos alunos e disposto a escutar as crianças. “Quando ela pede para falar com o professor, é preciso que ele lhe volte a atenção. Pode ser um pedido de ajuda. O processo de revelação de um trauma não tende a ser um momento em que a criança se aproxima e conta o ocorrido de forma direta. Ela chama um dia, comenta algo, divide um segredo, para ver como o professor reage. E o docente deve ter cuidado e sensibilidade”.
Caso a vítima revele o que está acontecendo, Jean orienta o professor a explicar para a criança que isso não pode acontecer e a dizer que juntos irão decidir como agir. “A tendência é analisar junto com a criança se ela tem um adulto de referência para ser incluído nessa conversa e receber orientações sobre o que fazer. Se não houver ninguém, cabe à escola encaminhar o caso. O professor precisa explicar à criança os procedimentos e o porquê se deve ir ao Conselho Tutelar – daí a importância de o docente estar capacitado.”
Jean Von Hohendorff reforça que não é preciso ter certeza para fazer uma notificação, basta um quadro de suspeita, conforme diz o artigo 13 do ECA.
“O professor não pode se omitir, deixar de fazer a notificação, porque, nesse caso, a escola passa de um papel potencialmente protetivo para se tornar um fator de risco à criança. Se a escola – local que a criança mais frequenta, além da própria casa – desconfia que no ambiente familiar possa estar acontecendo algo inadequado e não faz nada, ela está trabalhando em uma lógica de se tornar agressora também. É importante buscar informação, capacitação e uma parceria com o Conselho Tutelar da região para agir em casos de suspeita.”
O psicólogo destaca que os danos às vítimas não são irreparáveis; muito pelo contrário. “A criança ou o adolescente pode se recuperar e ter uma vida normal, apesar dessa vivência. E para haver recuperação, não basta que peça ajuda; ela precisa de um contexto que responda a essa ajuda, ser bem acolhida, para que as consequências não sejam exacerbadas. Deve haver uma intervenção em rede, com psicoterapia, atendimento psicossocial e médico, políticas públicas que permitam que as famílias tenham mais do que o mínimo para sobreviver (já que muitas estão em um contexto de extrema pobreza). Todos esses aspectos influenciam na recuperação da criança.”
Onde notificar a suspeita ou caso de abuso sexual
O professor deve notificar os casos suspeitos ou confirmados de violência contra as crianças ao Conselho Tutelar (confira aqui os endereços na cidade do Rio de Janeiro) ou à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (Rua do Lavradio, n° 157, Lapa), órgãos responsáveis por apurar este tipo de denúncia. Denúncias anônimas podem ser feitas para o Disque 100, Disque Denúncia Nacional, do Ministério de Direitos Humanos.
Na Rede Pública Municipal de Ensino, o docente e a direção da escola também podem buscar orientação nas Coordenadorias Regionais de Educação. “Se o professor não sabe como encaminhar o caso, o que fazer, ou tem medo de retaliações por parte da comunidade ou do grupo familiar, se não se sente seguro, pode procurar auxílio na CRE. O importante é que escola e docente não se sintam sozinhos ou com o peso da responsabilidade. Já vimos professores ficarem doentes, com medo de falar ou de buscar o Conselho Tutelar. Então, peçam ajuda”, orienta André Melo, assistente social do Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares (Niap).
Segundo ele, toda escola tem uma ficha de comunicação em casos de suspeitas de violência relacionada à criança e ao adolescente. Caso haja necessidade, as CREs também possuem uma cópia do documento, publicado no Diário Oficial.
O que diz a legislação
Criado em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei N.º 8.069), dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. De acordo com o documento, no artigo 13, “casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade”. O mesmo documento afirma que professores e responsáveis por instituições de ensino fundamental, pré-escola ou creche têm a obrigação de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento.
Isso é assegurado pela Constituição Federal, que no artigo 227 diz ser dever da família, da sociedade e do Estado colocar a criança e o adolescente a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.