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Como promover uma educação antirracista?
29 Julho 2020 | Por Márcia Pimentel
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Foto: Agência Brasil, cc

O Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) em 2019, indica que 75% das vítimas de homicídio, no Brasil, são negras. Dados da ONG Todos pela Educação revelam que 74% dos jovens brancos concluem o Ensino Médio até os 19 anos, enquanto o mesmo ocorre com apenas 53,9% dos afrodescendentes. Inúmeros outros índices fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que esse mesmo grupo étnico está entre os mais pobres do país, costuma morar nos lugares com menor infraestrutura, exerce os trabalhos mais subalternos, recebe os menores salários. Inúmeras secretarias de Educação têm revelado que o acesso precário à internet vem dificultando o acompanhamento dos alunos mais pobres às atividades remotas, de forma que os negros também estão entre os mais prejudicados.

Os movimentos negros têm afirmado que grande parte da sociedade brasileira não reconhece a existência de racismo no país. “Dizem que é mimimi nosso”, diz o professor de pós-graduação em História e em Humanidades Digitais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Álvaro Pereira do Nascimento. Segundo ele, o racismo está tão impregnado entre os brasileiros, que a população comete atos racistas, diariamente, sem perceber: “Aqui, o racismo é tão estrutural e naturalizado, que a pessoa crê que não é racista. Ri de piadas que depreciam os negros e acha isso normal.  A sociedade brasileira precisa reconhecer seu racismo e que isso se reflete nos seus atos cotidianos e faz mal à democracia, porque só aprofunda as desigualdades”.

Os efeitos do racismo estrutural da sociedade brasileira também são percebidos pela escola. Na Rede Pública Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, professores e diretores já revelaram a baixa autoestima dos estudantes afrodescendentes e o recorrente bullying contra eles. Mas não apenas isso. Inúmeros alunos negros negam as próprias características raciais, fato que tem levado várias escolas a realizarem projetos de valorização da etnia. “Há uma cultura de supremacia branca construída no decorrer dos tempos. Todas as conotações negativas recaem sobre os negros. Ser identificado como tal é ser relacionado à feiura, ao roubo, à falta de inteligência, às piores roupas e condições de vida, aos piores empregos, às casas mais precárias. O indivíduo não quer ser relacionado a isso e, quando não tem consciência de como o racismo é reproduzido no seu dia a dia, acaba negando a própria cor”, explica o professor da UFFRJ. 

Combate ao racismo nas escolas

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O professor Álvaro Pereira do Nascimento, da UFFRJ. Acervo pessoal

Em entrevista recente à Revista Educação, a mestranda em Ciências Humanas e Sociais Suzane Jardim defendeu a ideia de que os educadores precisam treinar seus olhares para as hierarquias raciais, existentes não só no dia a dia, mas também nos currículos escolares. Para ela, a educação não pode mais omitir as discussões sobre as relações raciais, observadas pelas ciências humanas e pelo movimento negro. Álvaro Pereira do Nascimento também acredita que é fundamental a existência desse debate no cotidiano das turmas. Para ele, a legislação brasileira já avançou na construção de uma educação antirracista, por meio das Leis nº 10.639 (2003) e nº 11.645 (2008), que dizem o que deve ser ensinado nas escolas e como fazê-lo. Ele lembra que os livros disponibilizados pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) estão, inclusive, em conformidade com essa legislação e, ainda, com o Estatuto da Igualdade Racial (Lei Nº 12.288, 2010) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), regulamentada em 2018.

“Esses quatro sustentáculos nacionais dizem que, desde o 1º ano do Ensino Fundamental, as crianças têm que aprender sobre a História da África e a História dos Negros no Brasil. O PNLD até disponibiliza manual e material digital e audiovisual para o professor, para que ele saiba ensinar os conteúdos dos livros. O que falta, então? Cobrança, inclusive dos pais de alunos, para que esse ensino seja efetivado nas escolas. Mas essa cobrança quase não existe, já que grande parte da sociedade acredita que não haja racismo no Brasil, mesmo quando uma senhora negra tem o pescoço pisado por um policial de São Paulo, poucos dias após a morte de George Floyd nos Estados Unidos. Isso é muito importante para entender como é o racismo no Brasil”, explica o professor da UFFRJ. 

Mas nem tudo é negação do racismo estrutural. A Secretaria Municipal de Educação (SME) do Rio de Janeiro estimula que as relações étnico-raciais sejam trabalhadas desde a primeira infância, nas escolas da Rede. No curso Formação Carioca 2020, por exemplo, orienta os professores a trabalharem os componentes curriculares de maneira não eurocêntrica, valorizando a cultura local da comunidade escolar. Durante a XI Jornada Pedagógica de Educação Infantil (JPEI), promovida recentemente pela SME, em parceria com a MultiRio, a palestrante Joana Oscar, doutoranda e professora da 4ª CRE, falou sobre as múltiplas infâncias: 

"A experiência, a cultura, o acesso aos bens de consumo, a identidade, o território e as brincadeiras não são uniformes e universais entre as crianças. A escola tem um papel importantíssimo porque é o primeiro lugar onde cada menino e menina se socializa, cotidianamente, fora do ambiente familiar. Quando se trabalha com um padrão eurocêntrico de identidade, as crianças indígenas e afrodescendentes se sentem cerceadas em sua expressão”, disse, explicando que trabalhar as relações étnico-raciais é assumir a diversidade de culturas, de experiências e de sujeitos. 

De forma geral, a rede pública parece mais receptiva à discussão do racismo, até porque é ela quem acolhe a grande maioria dos alunos negros. Isso não significa que a questão racial não exista dentro dela, mas o professor Álvaro Pereira do Nascimento preferiu tirar seu filho de uma escola da rede privada, porque se deparou com uma grande dificuldade em debater as situações de racismo com os profissionais que nela trabalham.  

O importante engajamento branco

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Caracterizações ao estilo black face , oriundas de antigo estilo teatral norte-americano, de motivação racista, são utilizadas até hoje em fantasias de carnaval. O Malho, 3/1/1910, dp

Muito embora as manifestações racistas tenham se tornado frequentes na sociedade brasileira, nos tempos recentes, segmentos da sociedade brasileira também começam a reconhecer a existência de racismo, no país, e a apoiar a luta do movimento negro, até porque sua negação contundente costuma estar associada a teorias e políticas totalitárias, que reafirmam a supremacia branca e a inferioridade negra. O professor da UFFRJ acredita que as volumosas manifestações contra o assassinato de George Floyd por um policial, que lhe pisou o pescoço até a morte, só aconteceram porque parte da sociedade branca dos Estados Unidos já percebeu que o racismo é um mal social, que atenta contra a democracia e a igualdade. 

Álvaro Pereira do Nascimento, contudo, chama a atenção para um fato: "O apoio dos brancos é fundamental, mas não apenas isso. É preciso que cada pessoa pare para pensar como o racismo percorre seus pensamentos, seus atos, suas veias e como isso tem consequências gravíssimas na vida de seres humanos que têm a pele negra, como levar tapa na cara, ter um filho de 5 anos deixado sozinho no elevador, ser arrastado pelo camburão, pisoteado no pescoço, metralhado sem motivo. A sociedade branca precisa conhecer o conceito de ‘branquitude’  para entender que ela criou um mal chamado racismo, que precisa ser banido”.

O conceito de ‘branquitude’, conforme Lia Vainer Schuman expõe em seu livro Famílias inter-raciais, está associado à identidade racial branca e “se caracteriza, nas sociedades estruturadas pelo racismo, como um lugar de privilégios materiais e simbólicos construído pela ideia de ‘superioridade racial branca’ e edificado pelos homens da ciência no século XIX, delimitando fronteiras hierarquizadas entre brancos e outras construções racializadas”.  É bom lembrar que, além da história da escravidão, teorias de branqueamento racial também tiveram entrada forte no Brasil, desde a segunda metade do século XIX, estendendo-se pelo século XX. Ou seja, de forma geral, os brasileiros de hoje herdaram uma cultura racista de seus pais, avós e bisavós, naturalizando preconceitos cotidianos e não percebendo o teor historicamente pejorativo contido em diversas construções simbólicas, como o termo mulato (oriundo de mula), entre muitas outras.  

Os racistas assumidos e radicais expõem inúmeros preconceitos que existem de forma velada e naturalizada dentro da sociedade. A imprensa já revelou vários casos de pacientes que se recusam a serem atendidos por profissionais negros, como aconteceu com o médico Danilo Silva, da UPA - Tijuca, onde um senhor não queria ser tratado por ele. “As pessoas ao meu redor diziam que não era nada. Quem não é negro não sabe como é. E isso dói”, desabafou o médico em entrevista ao jornal Extra. É preciso, sobretudo, entender que a naturalização das situações de preconceito só aprofunda o racismo dentro da sociedade, assim como se faz necessário reconhecer a resistência que se tem quando nos deparamos com um negro em posição de autoridade. Como diz o professor Álvaro Pereira do Nascimento, é preciso reconhecer o racismo que corre nas veias para combatê-lo. Para a redução das desigualdades e pelo bem da democracia.

 
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