A nova geração de gamers não sabe a sorte que tem. Se nos anos 1980 videogame em casa era motivo para muita bronca, hoje em dia pais e filhos organizam torneios entre si, como mostra a Pesquisa Game Brasil 2015. Realizado por um grupo de empresas que inclui a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o estudo buscou traçar o perfil do jogador brasileiro e descobriu que 82% dos adultos jogam com seus filhos. A tendência indica o crescimento, já que, atualmente, 90% da faixa etária até 20 anos joga videogames, sendo que 47% do universo total de jogadores são mulheres.
Pelo tempo de convívio, os jogos eletrônicos contemporâneos já têm reconhecida sua legitimidade como artefatos culturais. E como demorou! A inserção dos jogos no cotidiano moderno como produto de massa começou com os pinballs norte-americanos, lá na década de 1930 – conhecidos por aqui como as velhas máquinas de fliperama. A evolução foi grande. Os videogames atuais possuem linguagens informáticas que permitem não apenas uma representação da realidade, sempre mais rica em detalhes, mas também exigem níveis de elaboração mental cada vez mais complexos, o que faz com que sejam praticamente irresistíveis, não somente para boa parte do público jovem, como vimos, mas do adulto também.
O negócio dos jogos já gerou primeiro recenseamento
A partir da virada do milênio, a indústria dos videogames superou a do cinema, a da música e a dos livros em termos de volume de negócios, tornando-se a principal referência mundial no setor do entretenimento. O mercado de trabalho também se encontra aquecido. No início deste ano, entrou em funcionamento o primeiro curso de jogos digitais oferecido em faculdade federal do país, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ), em Engenheiro Paulo de Frontin, região sul do estado do Rio de Janeiro. A proposta é combater o desemprego, qualificando programadores que venham a abrir seu próprio negócio no futuro. Uma lei federal de 2013 garante incentivos fiscais para empresas do ramo.
Ofertas para a formação de mão de obra qualificada é o que não falta, desde cursos superiores e politécnicos até os de extensão e os de pós-graduação. Mas também há uma boa oferta de cursos técnicos, com cerca de 200 horas, como o de Designer de Games, oferecido pelo Senac. Ou o de Técnico em Programação de Jogos Digitais do Senai-RJ. O talento pessoal e o grau de familiaridade do aluno com o universo dos games podem compensar eventuais diferenças nos recursos disponíveis para investir na carreira.
Em 2014, a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames) encomendou à Universidade de São Paulo (USP) uma pesquisa, financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que resultou no I Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais. O estudo fez o mapeamento de 130 empresas desenvolvedoras em território nacional, a fim de que ele sirva de base para políticas públicas de incremento no setor. Atualmente, 73,4% das empresas têm apenas cinco anos de fundação, o que indica uma explosão da atividade, especialmente para plataformas mobile e web, em contrapartida aos jogos produzidos para consoles e computador, que prevaleciam até 2009. A maioria é formada por micro e pequenas empresas, que estão de portas abertas para a mão de obra feminina: enquanto a média no exterior gira em torno de 5% – com grandes indústrias que produzem games visando ao mercado masculino –, no caso brasileiro, das 1.133 pessoas que estavam empregadas nessas empresas, 85% eram homens e os restantes 15% eram mulheres.
Esteban Clua é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e dá mais detalhes do fenômeno. “Essa é uma característica da indústria dos jogos: a tarefa de programação atrai mais os homens e, em qualquer curso, menos de 20% da turma são meninas. Até mesmo a Google promove um congresso só para mulheres nos Estados Unidos, justamente para valorizar uma maior adesão feminina em desenvolvimento.” E quanto às consumidoras? “É natural que um homem produza um game para ser jogado por homens. Mas também existem jogos que atraem o interesse predominantemente de mulheres, como o SimCity, que chega a uma proporção de cinco jogadoras para cada jogador. É um erro pensar que elas não jogam, mas existem diferenças. Enquanto os homens gostam de se locomover espacialmente, as mulheres preferem jogos mais casuais e que gerem interação com outras pessoas”, aponta o especialista.
Lente de aumento sobre os videogames
Por criar mundos fantasiosos, os games costumam ser acusados de provocar um distanciamento nocivo da realidade: será que isso é correto? “Na verdade, o distanciamento é necessário, já que o jogador precisa ter um descolamento do real, a fim de entrar num estado de ludicidade. Filmes e livros também provocam esse efeito, graças àquilo que Huizinga denominou de ‘círculo mágico’”, afirma Clua, fazendo referência à obra clássica para pesquisadores do setor, Homo Ludens, lançada por Johan Huizinga em 1938. Mas, diferentemente de quando se assiste a um filme, o videogame depende do processo mental do jogador. “Se você desviar a atenção para outra coisa, o jogo para.”
Mais um aspecto ressaltado pelo pesquisador diz respeito à calibragem do desafio em si. “Independentemente do tipo de jogo, sempre se trabalha com os chamados puzzles, ou padrões. Se eu propuser um padrão mental muito fácil para a habilidade cognitiva do jogador, não terá a menor graça. Por outro lado, se o jogo é muito complicado, o cérebro se aborrece e você desiste de jogar. Sendo assim, uma das maiores dificuldades na hora de conceber um game está em como apresentá-lo com essa adequação.” É a lógica da Teoria do Flow, como bem lembra Clua. Proposta pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi, essa teoria descreve um estado mental de foco absoluto que precisa estar em equilíbrio com a atividade. Se não, surge a ansiedade (sentida quando o desafio é muito maior que a competência) ou o tédio (quando é muito menor).
Quanto ao uso dos jogos na educação, o professor garante que é um erro pensar que esse recurso equivale a ensinar usando livros e documentários, já que ambos são técnicas consideradas passivas – o produto está pronto e independe da interferência de um agente. Ele destaca, no entanto, a importância dos games na indústria da simulação. “Ainda não inventaram forma melhor de aprender a pilotar um avião. Aqui no Medialab, acabamos de desenvolver um simulador para pilotagem encomendado pela Marinha do Brasil”, conta o coordenador do centro de pesquisa da UFF. “É claro que jogo ensina. A construção do conhecimento depende do processo cognitivo de quem joga. A vivência gera uma aprendizagem mais forte, porque você está sendo participativo no ambiente, como quem aprende uma língua estrangeira ao viajar para o exterior.” O alcance dos videogames, inclusive, se beneficia de um aspecto adicional ressaltado pelo especialista: a linguagem do jogo independe do idioma. Por isso, a indústria dos games se tornou global.
O poder do pequeno
Dado o volume de novos lançamentos, aumenta cada vez mais a concorrência mundial, o que leva à necessidade de produtos com algum tipo de diferencial. No presente, o Brasil tenta recuperar o tempo perdido. “Nossa indústria teve um problema histórico, que foi a presença de estúdios de grande porte como desenvolvedoras, na era anterior ao Google Play e à Apple Store. Não havia espaço para empresas brasileiras terem contato com publicadoras. A partir do momento em que essas empresas ganharam representatividade on-line, houve uma reviravolta no modelo de negócios que deu oportunidade aos indies (independentes). Aí começaram a proliferar as empresas pequenas. Não temos grandes desenvolvedoras, mas aqui o setor cresce por outra vertente”, ressalta Clua, como que a confirmar os resultados do censo da Abragames.
Fontes: Pesquisa Game Brasil 2015, I Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, jornal O Globo, entrevista com Esteban Clua