Os últimos anos do século XIX no Brasil foram marcados por mudanças políticas expressivas: a escravidão foi abolida em 1888 e a monarquia foi deposta por um golpe militar no ano seguinte, 1889. Como consequência desses movimentos, conflitos aconteceram em diversos estados brasileiros.
Um deles ocorreu no sertão da Bahia, uma região semiárida, com baixo índice pluviométrico, vegetação de caatinga (caracterizada por arbustos retorcidos com poucas folhas) e altas temperaturas na maior parte do ano. Naquele cenário, que impunha à população uma série de dificuldades para sobreviver, um arraial de camponeses liderados por um homem chamado Antônio Conselheiro vivia à margem do poder instituído, negando-se a pagar impostos e atraindo a mão de obra local, que preferia viver com poucos recursos – mas de modo autônomo – a trabalhar nas fazendas.
Os latifundiários nordestinos estavam insatisfeitos com a atração que o arraial de Belo Monte exercia sobre a mão de obra local. Além disso, Antônio Conselheiro era monarquista, não reconhecendo a República recém-implantada, fato que aliava o poder político ao poder econômico dos coronéis contra Canudos, como era conhecida a região onde ficava Belo Monte (o nome Canudos vem de uma planta de haste oca, característica do local).
Deve-se dizer que a posição de Conselheiro não era uma exceção naquela época. A República não contava com apoio popular. Mesmo no Rio de Janeiro, a tropa do Exército desfilou em 15 de novembro de 1889, para marcar a proclamação, em ruas vazias, com o comércio fechado.
Força desproporcional
A situação do arraial de Canudos tornou-se crítica quando, em novembro de 1896, Antônio Conselheiro foi buscar em Juazeiro, com a ajuda de seus seguidores, material de construção para terminar a igreja de Belo Monte. Ele o havia comprado e pago, não sendo entregue por falta de transporte. Arlindo Leone, juiz de Direito, telegrafou ao governador da Bahia, Luiz Viana, pedindo providências para defender Juazeiro, alegando que a cidade estava sendo ameaçada de invasão pelos jagunços de Conselheiro.
Cem praças, sob o comando do tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, se dirigiram para Juazeiro, mas não esperaram que os “jagunços” chegassem à cidade, investindo contra eles no povoado de Uauá. Os sertanejos se defenderam e venceram os soldados com clavinotes (carabina pequena), facões de folha-larga, foices, chuchos de vaqueiro (objeto artesanal pontiagudo e metálico) e outros instrumentos rudes que portavam.
O general Frederico Solón considerou o ocorrido uma afronta ao Exército e à sua autoridade e decidiu enviar, em janeiro de 1897, uma segunda expedição contra Canudos, maior e mais bem armada: 543 soldados, 14 oficiais, duas metralhadoras Nordenfeldt e dois canhões Krupp 7,5. Estavam sob o comando do major Febrônio de Brito. Novo fracasso. Foram rechaçados na Serra do Cambaio, trincheira de defesa dos conselheiristas, a seis quilômetros de Belo Monte. Segundo Euclides da Cunha, na obra que imortalizou o episódio – Os Sertões –, cada seguidor de Conselheiro se transformava em “guerrilheiro-tugue, intangível”, tendo na caatinga um “aliado incorruptível do sertanejo em revolta”.
Corta-cabeças
O vice-presidente do Brasil, Manuel Vitorino Pereira, que governava a República interinamente devido a motivos de saúde do presidente Prudente de Moraes, enviou contra Canudos uma terceira expedição, ainda mais bem preparada para o combate que a anterior: 1.281 soldados sob o comando do coronel Antônio Moreira César, experiente militar que tinha reprimido uma tentativa de desmembramento do Rio Grande do Sul, em 1895. Desde então, ganhou o apelido de corta-cabeças, por praticar a degola de forma sistemática durante aquele episódio. Essa nova investida, em 3 de março de 1897, também foi malsucedida. Coronel Moreira César foi alvejado e morreu em conflito, causando grande repercussão no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Mesmo com as investidas violentas contra Canudos, centenas de sertanejos continuavam a migrar para lá. Os combatentes de Antônio Conselheiro conseguiam resistir porque se moviam com velocidade na caatinga, surpreendendo e emboscando as tropas do Exército, que eram formadas por soldados e líderes de outros estados brasileiros, não acostumados à aridez do sertão. Além disso, os conselheiristas foram conseguindo mais e melhores armas ao longo das sucessivas investidas, apreendidas ou abandonadas pelas expedições anteriores, que batiam em retirada.
Mas não foi possível a Canudos se manter frente ao quarto assalto do Exército brasileiro, que mobilizou para a empreitada um terço de seu efetivo – cerca de dez mil homens, munidos com 18 canhões. Antônio Conselheiro faleceu no dia 22 de setembro, de causas indeterminadas. As tropas do governo tiveram cerca de cinco mil baixas durante a campanha. Euclides da Cunha, que cobria a guerra para o jornal O Estado de São Paulo, anotou que “Canudos não se rendeu”; e mais: “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”; arrematando, “a repressão tinha dois polos – o incêndio e a faca”. O arraial, depois de um ano de violentos combates, foi inteiramente destruído, em outubro de 1897, com o Exército ateando-lhe fogo ao final.
Como surgiu Antônio Conselheiro
Antônio Vicente Mendes Maciel nasceu em 1830, em Quixeramobim, no Ceará. Sua mãe morreu quando tinha 6 anos, e sua juventude foi marcada por uma madrasta que o maltratava, pelo alcoolismo paterno e a violência letal entre a família Maciel e seus rivais, os Araújo. Seu pai tinha um armazém de secos e molhados e, como queria que seu filho seguisse a carreira religiosa, matriculou-o no curso do professor Manuel Antônio Ferreira Nobre para aprender Latim. Com o professor, ele também estudou Aritmética, Português, Geografia e Francês. Gostava de ler narrativas místicas, frequentava a igreja e era amigo do padre.
Antônio se casou com uma prima de 15 anos, com quem teve dois filhos. Como o comércio herdado do pai não ia bem, Antônio penhorou seus bens e mudou-se com a esposa, filhos e sogra para o interior da Província. Foi caixeiro em Sobral, escrivão em Campo Grande, solicitador (advogado sem diploma) em Ipu e professor no Crato.
Um revés fez com que se desestabilizasse – sua mulher o abandonou, fugindo com outro homem. A partir daí, Antônio começou a perambular pelo interior nordestino, sem destino certo. Para sobreviver, trabalhava como pedreiro, recuperando ou construindo igrejas e cemitérios, ofício este também aprendido com o pai, que gostava de construção civil.
Na sua dor, seguiu os passos do padre José Antônio Pereira Ibiapina, que fazia trabalho missionário pelo sertão nordestino – percorria cidades e povoados catequizando, conciliando intrigas e promovendo obras de caridade (abria cacimbas, construía açudes e orfanatos, tudo com e para o povo).
No sertão nordestino, isolado dos centros urbanos do litoral, o povo encontrava esperança na religiosidade – a fé no “bom Jesus”. A população miserável e castigada pelo clima inóspito acreditava que as portas do céu estariam abertas para eles, que seriam salvos depois da morte e recompensados por tantos sofrimentos.
O arraial de Canudos
Seguindo a tradição na qual tinha se criado e estava mergulhado, Antônio passou a ler o Evangelho para a população, ouvir seus problemas e aconselhá-los, daí recebendo a alcunha de Conselheiro. Fiéis passaram a acompanhá-lo em suas andanças e, a cada novo povoado, aumentava o número de seguidores. Essa peregrinação durou duas décadas, até que a romaria se fixou, em 1893, às margens do Rio Vaza-Barris, uma região conhecida como Canudos, no nordeste da Bahia (o nome é uma referência a uma planta local, de haste oca, que era usada para fazer pitos de fumar). Fundou ali, junto àquele rio sazonal (só havia água no período de chuvas), um povoado chamado de Belo Monte. Como novos adeptos não paravam de chegar, tornou-se uma cidade com cerca de 30 mil habitantes. Em três anos de existência, era a segunda cidade em número de habitantes do estado da Bahia.
O correspondente do Jornal do Comércio que cobriu o conflito, jornalista Manuel Benício, fez seu retrato do arraial: “As margens frescas do rio eram cultivadas com plantações de diversos legumes, milhos, feijão, grogotuga, favas, batatas, melancias, gerimuns, melões, canas, etc... Nos terrenos arenosos viam-se milhares de matombos, grelando o talo tenro das mandiocas e outros com estacas de diversos tamanhos. Pela vizinhança, os pequenos cultores da terra, em Canudos, possuíam sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e cavalares” (relato incluído na tese de Doutorado do Programa de Estudos Pós-Graduados em História Social, da PUC-SP – Canudos / Belo Monte: Imagens Contando História –, cujo autor é Sérgio Armando Diniz Guerra).
Já Euclides da Cunha nos deixou essa descrição em Os Sertões: “A propriedade tornou-se-lhe uma forma exagerada de coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação pessoal apenas dos objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota parte, revertendo o resto para a companhia. Os recém-chegados entregavam ao Conselheiro 99% do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha restante”.
Sobre Antônio Conselheiro, Canudos 50 Anos Depois, editado pela Academia de Letras da Bahia, traz depoimentos de pessoas que conviveram com o líder religioso. Maria Avelina da Silva, por exemplo, descreveu-o assim: “O Bom Jesus foi um santo homem que somente aconselhava para o bem. Nunca fez mal a ninguém”. Manoel Ciríaco disse que era homem bom e respeitador. E Maria Guilhermina de Jesus afirmou: “Nasci e me criei dentro de Canudos, onde fiquei até o fim da luta. (...) Lembro-me bem de Antônio Conselheiro, homem muito bom, e não havia ninguém que não gostasse dele”.
Vanessa Sattamini Varão Monteiro, em Canudos: Guerras de Memória, texto publicado na revista Mosaico, da FGV, relata que, para Euclides da Cunha, “Conselheiro entrou para a História como poderia ter entrado para o hospício”.
Epílogo
Luiz Alberto Moniz Bandeira, doutor em Ciência Política e professor titular aposentado da UnB, em O Sentido Social e o Contexto Político da Guerra de Canudos, sustenta que o termo favela surgiu a partir do conflito ocorrido no sertão baiano. Segundo o autor, os soldados voltaram para o Rio de Janeiro sem ter para onde ir com suas famílias, já que, em sua maioria, eram originários do sul do país. Por isso, ergueram barracões em um morro situado atrás do Ministério da Guerra, no Campo de Santana, e o chamaram de favela, como lembrança do local onde instalaram a base das operações no sertão da Bahia – um morro homônimo, em frente a Canudos.
Canudos hoje
Os sobreviventes de Canudos, 13 anos depois do massacre, voltaram a residir no local, mas não puderam ficar lá, pois mais uma vez o povoado foi suprimido do mapa – dessa vez, em lugar de fogo, usou-se água: o açude de Cocorobó foi construído no local em 1969.
Em 1992, migrantes de Canudos vivendo em São Paulo criaram a União pelos Ideais de Canudos. Segundo os participantes, a Upic trouxe coesão e identidade ao grupo e possibilitou o restabelecimento de uma rede de parentesco importante para eles.
Série relembra revoltas populares no Brasil
Com imagens e gravações históricas, a série televisiva O Mochileiro do Futuro, da MultiRio, aborda revoltas populares que marcaram o Brasil. Os programas mostram um jovem que encontra um par de óculos capazes de transportá-lo ao passado. Nessa viagem virtual, ele vivencia trechos importantes da História.
Os primeiros episódios trazem a Revolta da Chibata, a Guerra de Canudos e a Revolta da Vacina e podem ser vistos na Videoteca do Portal MultiRio.
Fontes:
Antônio Conselheiro, texto de Maria do Carmo Andrade, Fundação Joaquim Nabuco, Recife
Canudos: Guerras de Memória, de Vanessa Sattamini Varão Monteiro, em Revista Mosaico, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil / FGV
O Sentido Social e o Contexto Político da Guerra de Canudos, texto de Luiz Alberto Moniz Bandeira, doutor em Ciência Política.
Site da Fundação Padre Ibiapina