Em 2025, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990, completa 35 anos de existência como marco legal da proteção integral de meninas e meninos no Brasil. Promulgado em 13 de julho de 1990, o ECA representa um divisor de águas na concepção de infância e adolescência no país, estabelecendo que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, entre eles, o direito à educação.
Três décadas e meia depois, os avanços oriundos do ECA são inegáveis, mas ainda persistem obstáculos importantes para que o direito à educação de qualidade se realize plenamente.
Crianças e adolescentes como sujeitos de direitos
Segundo Luiz Serafim, coordenador da Coordenadoria de Conselhos da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) do Rio de Janeiro, o ECA substituiu o Código de Menores, criado em 1927, onde crianças e adolescentes eram objetos da Lei, sendo colocados, em situações de conflito, na condição de Menor Infrator.
“A partir do ECA, essa condição é ressignificada e esse público deixa de ser tratado como objeto da Lei e passa à condição de sujeito de direitos. (...) Passamos a atender a agenda dos Direitos Humanos trazida pela Constituição Federal de 88, vez que o Estado, a sociedade e a família passam a ter o dever com a garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.” (Luiz Serafim, SMAS)
Do direito à matrícula ao direito à aprendizagem
Desde a criação do ECA, o Brasil avançou significativamente na ampliação do acesso à educação básica. A obrigatoriedade da matrícula de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos, posteriormente estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/1996, e incorporada à Constituição Federal, com a Emenda Constitucional nº 59/2009, tem raiz no Estatuto.
“O Artigo 53 do ECA trouxe explicitamente o direito à educação. O Artigo 54 estabelece como dever do Estado assegurar o ensino fundamental, obrigatório e gratuito (...) e a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio. Além disso, garante o atendimento em creche e pré-escola para crianças de zero a seis anos. O Artigo 55 complementa, dispondo que os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos na rede regular de ensino.” (Luiz Serafim, SMAS)
Atualmente, segundo dados do Censo Escolar — pesquisa realizada anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em regime de colaboração com as secretarias estaduais e municipais de Educação e a participação de todas as escolas públicas e privadas do país —, a taxa de escolarização na educação básica supera os 90%. Na etapa de ensino fundamental, com crianças de 6 a 14 anos, a taxa é de 99,5% e já considerada de universalização.
Na divulgação do Censo Escolar 2024, o presidente do Inep, Manuel Palacios, destacou o processo de universalização do acesso à educação: “O país, há poucas décadas, não conhecia essa experiência de escolarização e, hoje, temos mais de 90% dos jovens e crianças até os 18 anos frequentando a escola básica. Além disso, temos taxas de universalização no ensino fundamental”.
O ECA também contribuiu para a formulação de diversas outras políticas públicas na área da Educação. Segundo Gabriel Salgado, Gerente de Educação e Culturas Infanto-Juvenis do Instituto Alana, em entrevista para a MultiRio, “a criação de políticas como o Fundeb, o Plano Nacional de Educação e o Programa Nacional de Alimentação Escolar são exemplos disso”.
“O ECA consolidou o direito à educação como um direito humano fundamental, articulado ao princípio da proteção integral e da prioridade absoluta. Ele reforçou a obrigação do Estado de garantir acesso universal, gratuito e com qualidade social à educação básica, sem discriminação. A partir dele, políticas públicas passaram a incorporar também dimensões como inclusão, equidade e participação infantojuvenil nos espaços escolares.” (Gabriel Salgado, Instituto Alana)
Desafios para efetivação dos direitos
Apesar dos avanços das últimas décadas, garantir o acesso não tem sido suficiente: é preciso assegurar permanência, aprendizagem e condições equitativas de desenvolvimento integral de crianças e adolescentes na educação básica.
Luiz Serafim destaca o desafio da localização geográfica e acesso, pensando a distância entre casa e escola.
“O Brasil tem dimensão continental, temos que pensar nas áreas rurais ou comunidades isoladas, onde a grande distância até a escola e a falta de transporte escolar ainda são barreiras. Apesar dos avanços, ainda há localidades onde a oferta de vagas, especialmente na educação infantil, é insuficiente para atender à demanda.” (Luiz Serafim, SMAS)
As questões de infraestrutura e logística, como falta de vagas e de transporte, contribuem também para outros desafios como a evasão escolar e a distorção idade-série. Além disso, as violências e as desigualdades regionais e raciais continuam a comprometer a efetivação plena dos direitos educacionais.
“Os principais desafios estão na desigualdade estrutural, no subfinanciamento crônico da educação pública e na ausência de políticas articuladas de proteção. A evasão escolar, por exemplo, afeta com mais intensidade adolescentes negros, indígenas, das periferias e jovens mães, além de crianças e adolescentes com deficiência. Também enfrentamos resistências à educação antirracista, à educação sexual, ao debate de gênero e à valorização da diversidade — temas fundamentais para prevenir violências.” (Gabriel Salgado, Instituto Alana)
Escola como espaço de proteção e cidadania
O ECA estabelece que crianças e adolescentes têm direito à proteção integral, e a escola é entendida como um dos principais espaços onde esse direito deve ser garantido. Isso implica que a instituição escolar tem o dever de zelar pela saúde e integridade física e emocional de estudantes.
As escolas devem atuar no combate e na prevenção de diversas formas de violência, promovendo cultura de paz, respeito e inclusão; desenvolvendo práticas pedagógicas que promovam valores de convivência democrática, respeito às diferenças e autonomia; e adotando a escuta ativa e o acolhimento das vítimas.
Luiz Serafim reforça esse papel das instituições de ensino:
O ECA define que a Escola tem dever de Proteção Integral e, em seus Artigos 5º e 18º, estabelece que nenhuma criança ou adolescente será objeto de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Os Artigo 13º e o Artigo 245º determinam que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças ou adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade. Isso inclui a obrigação de professores e responsáveis por estabelecimentos de ensino de realizar essa comunicação.
(Luiz Serafim, SMAS)
Diana Proença, pedagoga da MultiRio, orienta que as escolas devem “promover um ambiente seguro, acolhedor e livre de preconceitos”.
"Para isso, são possíveis as criações de projetos educativos sobre direitos humanos, escuta qualificada para denúncias e formação de professores para identificar e intervir em situações de risco.” (Diana Proença, MultiRio)
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Educação socioemocional e midiática: urgências do presente
Um eixo trabalhado no ECA que está fortemente presente nas atuais discussões de direito de crianças e adolescentes é o de educação socioemocional. A garantia ao respeito, à dignidade, à diversidade e à convivência comunitária — valores fundamentais do Estatuto — passam pela valorização da escuta, da empatia e da autorregulação emocional.
“O desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes envolve não apenas aspectos cognitivos, mas também habilidades como empatia, autocontrole e respeito ao próximo, fundamentais para a convivência em sociedade. Ao valorizar as diferenças e incentivar o diálogo, ajuda a formar cidadãos mais conscientes e solidários. A liderança pelo exemplo dentro e fora da sala de aula, a definição de rotinas de acolhimento, a mediação de conflitos e atividades socioemocionais integradas são formas de assegurar que a temática ganhe espaço e venha a se desenvolver no âmbito educacional.” (Diana Proença, MultiRio)
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Outro eixo cada vez mais relevante no cenário da educação em tempos de grandes transformações sociais e tecnológicas é o da educação midiática. A educação midiática está diretamente relacionada aos direitos, assegurados pelo ECA, de acesso à informação, à formação cidadã e à proteção contra conteúdos prejudiciais. Hellen Rodrigues, também pedagoga da MultiRio, cita que “o art. 16 do ECA garante o direito à liberdade de expressão, enquanto o art. 17 assegura o respeito à dignidade, à imagem e à identidade de crianças e adolescentes”.
“A educação midiática contribui para o fortalecimento do pensamento crítico, da autonomia e da capacidade de identificar e combater a desinformação, protegendo os estudantes de manipulações. Além disso, ela fortalece o direito à participação social, ao incentivar que crianças e adolescentes se expressem de forma consciente, ética e responsável nos ambientes digitais e sociais, contribuindo para sua formação como cidadãos ativos, informados e protegidos.” (Hellen Rodrigues, MultiRio)
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Formação docente contínua e crítica
Torna-se imprescindível que as escolas contem com profissionais de educação preparados e atualizados para lidar com os desafios contemporâneos da vida em sociedade e suas transformações sociais e tecnológicas. A formação docente, portanto, precisa ser contínua e atenta às influências que a cultura digital traz para crianças e adolescentes, com foco na promoção de práticas pedagógicas inclusivas, comprometidas com os direitos humanos, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.
Hellen comenta que “um dos principais desafios da formação docente hoje é garantir espaços de formação continuada, que promovam o desenvolvimento profissional constante”.
“É essencial estimular a aprendizagem ao longo da vida, oferecendo oportunidades para que educadores reflitam criticamente sobre suas práticas e estejam preparados para lidar com temas como diversidade, inclusão, tecnologia e direitos humanos. Outro desafio importante é fomentar práticas pedagógicas interdisciplinares, que articulem esses temas de forma significativa no cotidiano escolar. Isso contribui não apenas para a formação cidadã de crianças e adolescentes, mas também para o fortalecimento de uma escola comprometida com a justiça social, a equidade e o respeito às diferenças, pilares fundamentais para a efetivação dos direitos garantidos pelo ECA.” (Hellen Rodrigues, MultiRio)
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Como educar e proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais
Iniciativas para impulsionar a educação e os direitos das crianças e adolescentes
Com mais de 30 anos dedicados a impulsionar a educação, a MultiRio desenvolve uma série de iniciativas alinhadas ao ECA, dentre formações para professores e materiais de estudo para crianças e adolescentes. Entre as mais recentes destacam-se o jogo Dá o Papo e a ANDAR - Agência de Notícias de Alunos da Rede.
Para apoiar professores e estudantes na conversa sobre temas sensíveis, como discriminação, preconceito, bullying, cyberbullying, racismo, entre outros, o Dá o Papo “é composto por cartas com frases baseadas em situações reais do cotidiano escolar. Cada carta propõe um ponto de partida para discussões coletivas, incentivando os participantes a se expressarem a partir de seus lugares de fala e a refletirem sobre questões que os impactam, direta ou indiretamente”, explica Diana. Com uma abordagem lúdica e em forma de edutenimento, a iniciativa promove aprendizado e o desenvolvimento de habilidades socioemocionais.
Assista ao vídeo:
Conheça o Dá o Papo!
Desenvolvida pela MultiRio desde 2023, a ANDAR é uma iniciativa de educação midiática e protagonismo estudantil que transforma escolas em espaços de produção jornalística. A agência já envolve diretamente mais de 1.400 estudantes e cerca de 100 professores em 80 escolas da Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, promovendo a autoexpressão, o pensamento crítico e o desenvolvimento de competências digitais e comunicativas. Os alunos atuam como jovens repórteres, produzindo conteúdo multimídia publicados plataforma da ANDAR e no Instagram @andarnarede.
Trinta e cinco anos depois: compromisso renovado
Celebrar os 35 anos do ECA é mais do que relembrar sua importância histórica. É renovar o compromisso com uma educação que não apenas ensina, mas acolhe, protege, empodera e transforma. É reconhecer que garantir os direitos das crianças e adolescentes — especialmente à educação — exige políticas públicas consistentes, escuta ativa da comunidade escolar, inovação e, sobretudo, uma sociedade disposta a entender que o futuro é uma responsabilidade coletiva.
Fontes:
MEC e Inep contextualizam resultados do Censo Escolar 2024 — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira | Inep
Indicadores educacionais avançam em 2024, mas atraso escolar aumenta | Agência de Notícias