No Natal, inúmeras famílias costumam produzir refeições super caprichadas, ou até mesmo verdadeiros banquetes, para o almoço de 25 de dezembro. Tantas outras fazem a celebração na noite do dia 24, reunindo parentes para a ceia e a troca de presentes. Mas por que festejam a data com mais apuro na mesa, ou porque celebram, de véspera, o nascimento de Jesus? Provavelmente, a maioria desconhece como e por que tais hábitos foram criados, embora alguns pratos do menu de Natal costumam estar presentes na memória. Sinal de que a tradição familiar do evento natalino já se sobrepôs ao seu caráter religioso.
Seja qual for a tradição familiar, de ceia ou almoço, ambas remontam à milenar liturgia cristã, que pregava o jejum dos fiéis antes de todas as grandes festas religiosas. No caso do Natal, essa liturgia, conhecida como Advento, começava com a abstenção da carne vermelha e se estendia do quarto domingo anterior ao dia 25 até às 23h59min do dia 24. Na véspera da comemoração do aniversário de Cristo, o jejum, aliás, era total e, por isso, uma ceia era preparada para ser degustada à meia noite, ou depois da Missa do Galo, rezada no mesmo horário.
Natal na colônia
No Brasil colonial, a liturgia cristã era seguida conforme o hábito dos colonizadores portugueses, mas com peculiaridades. Segundo artigo do escritor Antonio Olinto, publicado no site da Academia Brasileira de Letras, várias festas aconteciam no dia 24 de dezembro, colônia afora, no aguardo da Missa do Galo, a exemplo de folguedos como o Presépio, o Pastoril e o Reisado, entre tantos outros. Findo o jejum, vinha a fartura de comida.
O Natal na colônia não era uma reunião intimista com a família, como é hoje. Era, sobretudo, uma festa de celebração do convívio comunitário, com muitos pratos e doces regionais. Ninguém ficava de fora da comemoração, da senzala à casa grande, dos trabalhadores urbanos aos administradores públicos, todos participavam e se confraternizavam. Excessos e bebedeiras eram comuns, segundo o antropólogo Câmara Cascudo. Havia ainda o costume das famílias (ou mesmo pessoas) presentearem umas às outras. Na maioria dos casos, os presentes eram víveres, sendo o chamado “pão de Deus”, coberto com creme e coco ralado, um dos regalos preferidos.
Tomando feições familiares
Junto com as revoluções Industrial e Francesa e a ascensão da burguesia veio uma série de transformações. Na Europa, a privacidade passou a ser cultuada como um novo valor e, em meados do século XIX, o Natal já parecia ser uma celebração predominantemente familiar. Nessa época, em Portugal, a maioria das casas preparava, no dia 24, apenas uma refeição leve (uma consoada no modo lusitano de dizer) para se alimentar ao fim do jejum. E, no dia 25, fazia um almoço repleto de iguarias, com tudo o que tinha direito. O cardápio (porco, ave, frutos do mar) variava conforme a região.
Esse hábito, contudo, não era comum a todo o país. No norte (da cidade do Porto para cima), era diferente. Lá não havia a Missa do Galo e as famílias se reuniam para degustar uma ceia completa, regada a bacalhau, polvo, vinho e muitas sobremesas, como arroz doce e aletria, assim que o relógio batesse meia noite.
A afirmação do caráter familiar sobre o cunho religioso do Natal aparece de forma mais clara, no fim do século XIX. O site português de crítica gastronômica Casal Misterioso nos conta que uma crônica do jornalista e escritor Ramalho Ortigão reclamava, na época, da “intromissão do lar pela sacristia” no momento da ceia de Natal. Ortigão era natural da cidade do Porto, centro nervoso da burguesia comercial portuguesa, mas havia se mudado para Lisboa, onde havia Missa do Galo e forte presença dos costumes da Corte.
Tal como no norte de Portugal, a comemoração na véspera de Natal era comum a outras regiões da Europa. Nas primeiras décadas do século XX, conforme nos revelam sites da França, a reunião familiar no dia 24 já havia se tornado tão importante quanto o almoço do dia 25. Em ambos os costumes, o patê de fígado de ganso, ostras e salmão constituíam o cardápio predileto das famílias francesas mais abastadas. Não demorou muito para a liturgia do jejum na véspera de Natal ser esquecida. Embora a ceia fosse mantida à meia noite, comes e bebes passaram a ser servidos antes.
Alimentos símbolos
Mesmo com o abandono da liturgia, vários hábitos alimentares, carregados de significados simbólicos, continuaram presentes na ceia e no almoço de Natal, a exemplo do vinho e sua conexão com o sangue de Cristo e o sagrado. Na Itália, onde costumes pagãos foram incorporados à festa natalina, não podem faltar frutas secas e oleaginosas – como nozes, amêndoas e avelãs. Para garantir a fartura nos meses de frio, esses alimentos eram servidos aos deuses pelos antigos romanos, durante os festejos de solstício de inverno. Como o Natal passou a ser comemorado na mesma época, os cristãos absorveram o costume da festa pagã.
O peru assado, que também se tornou um símbolo da mesa de Natal, é um hábito adquirido em tempos mais recentes. Na Europa, de forma geral, e no Brasil, só foram incorporados à ceia e ao almoço natalino no século XX, à exceção da Inglaterra que já tinha absorvido a tradição de sua colônia americana. É que o peru é uma ave nativa da América do Norte e, por seu tamanho, virou símbolo de fartura entre os colonos norte-americanos, não podendo faltar no Dia da Ação de Graça. E como é mais fácil de engorgar que outras aves de mesmo porte, aos poucos, foram substituindo os cisnes e os gansos que eram, tradicionalmente, servidos na ceia e no almoço de Natal de vários países europeus.
Papai Noel
A troca de presentes, tal como conhecemos hoje, só se consolidou com a popularização de Papai Noel, cuja origem tem várias versões. A variante mais pragmática é de que a figura, tal como a conhecemos hoje, foi criada pelo ilustrador Thomas Nast e publicada pela primeira vez em janeiro de 1881 pela revista norte-americana Harper’s Weekly. O personagem, batizado de Santa Claus, foi inspirado no mito de São Nicolau, um bispo turco que viveu no século IV e tinha sua imagem associada ao bom velhinho que distribuía moedas de ouro e presentes aos mais necessitados
Utilizado, durante várias décadas, nas capas de fim de ano da revista, Papai Noel ainda ganhou um livro – Santa Claus and his works, escrito por George P. Webster e ilustrado pelo próprio Thomas Nast – que o descrevia como artesão de brinquedos e morador do Polo Norte. Em 1931, a Coca-Cola desenvolveu uma campanha publicitária de Natal “estrelada” por Papai Noel e produzida a partir de telas realistas pintadas a óleo pelo ilustrador e artista plástico Haddon Sundblom. O personagem ganhou popularidade e foi conquistando lugar cativo nas festas natalinas.
Internacional e regional
Com os grandes fluxos imigratórios, ocorridos nos séculos XIX e XX, principalmente de italianos, portugueses e alemães, novas receitas e itens alimentares foram sendo acrescentados à mesa de Natal dos brasileiros. Pratos assados e recheados, panetones, castanhas, frutas secas, nozes e outras oleaginosas, por exemplo, tornaram-se presenças quase obrigatórias nas festas de fim de ano. Não se pode esquecer, ainda, da influência dos EUA, que, além de Papai Noel e do peru, introduziu elementos como as saladas com maionese e os assados acompanhados de frutas.
Embora a atual ceia dos brasileiros tenha se internacionalizado e misturado influências, ela ainda conserva muitos aspectos regionais. A participante da terceira edição do Master Brasil Paula Salles, hoje produtora de eventos sobre cultura alimentar e influenciadora digital nas áreas de gastronomia e cultura, fala sobre essa diversidade:
“No Nordeste, muitas famílias servem pernil de bode ao forno, cuscuz com manteiga de garrafa, bolo de rolo com queijo do reino. No Centro-Oeste temos a presença de sobremesas com frutas do cerrado, o empadão goiano, o frango caipira. No Norte, os peixes de água doce têm protagonismo, ao lado das farofas com castanhas, do arroz de tucumã e da salada de folhas de jambu. No Sudeste, temos o bacalhau português no Rio, os suínos recheados e pururucados em Minas, o arroz enriquecido dos bandeirantes em São Paulo, a torta capixaba super enfeitada no Espírito Santo. E por fim, no Sul, temos forte influência de alemãs, suíços, poloneses e italianos, com seus strudels, carnes assadas em fogos de chão e pães recheados, tanto doces como salgados”.
Segundo Paula Salles, apesar das múltiplas influências internacionais, a ceia ou almoço de Natal reflete a cultura das famílias, suas tradiões e religião. Abaixo, a receita de um prato (que reúne várias influências) sempre presente na festa natalina da casa dela.
Lombo recheado com abacaxi e bacon
Ingredientes:
1kg de lombo suíno limpo
300g de bacon fatiado
1 abacaxi pequeno em finas fatias
2 colheres de sopa de molho shoyu
1 colher de chá de páprica defumada
raspas de limão
Alecrim e tomilho frescos a gosto
Sal e pimenta à gosto
Brócolis cozido no vapor (al dente) e tomates cereja
Preparo:
Faça um corte contínuo no lombo, na direção do centro, de forma que ele se abra, como um grande bife. Estique o lombo em cima de um plástico filme e bata com um soquete para que a carne fique toda da mesma espessura. Tempere com o shoyu, as raspas de limão, a páprica, o sal e a pimenta. Em seguida, forre toda a superfície da carne com as fatias de bacon e, por cima, disponha o abacaxi e as ervas. Com a ajuda do plástico filme, enrole o lombo, formando um rocambole. Embrulhe-o em papel alumínio, ou em plástico apropriado para assados. Asse em forno médio por cerca de 40 min, ou até que fique dourado. Retire o caldo do plástico culinário (ou papel alumínio) e regue a carne. Guarneça com brócolis cozido no vapor e tomatinhos cereja. O prato serve quatro pessoas.