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A língua portuguesa como idioma da ciência
14 Outubro 2014 | Por Sandra Machado
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A sistematização dos conhecimentos faz com que a grade curricular separe os saberes em disciplinas, mas essa divisão, pactuada no ambiente acadêmico, não se reflete na organização da realidade. Fora da escola, língua, história e ciência se misturam, assim como outros conteúdos, e formam a grande aventura humana, que é cheia de passagens ricas e, por vezes, esquecidas – ou até mesmo desconhecidas – para a maioria das pessoas. O idioma falado no Brasil, por exemplo, foi usado na circulação de importantes contribuições tecnológicas, em especial no século XVIII. Intelectuais apelidados de “estrangeirados”, porque voltavam a Portugal após beberem da fonte iluminista fora do país, se destacaram nessa produção, assim como os cidadãos portugueses nascidos no Brasil que também iam fazer sua formação no exterior.

preguiçaInício em Portugal

Como herança do Império Romano, o latim vulgar deu origem às línguas neolatinas, também chamadas de românicas. O galego-português predominava na região central da Península Ibérica, enquanto ao sul, inclusive em Lisboa, prevaleciam os dialetos moçárabes, falados nas áreas dominadas pelos muçulmanos. Na consolidação do reino português, em 1279, dom Dinis declarou a língua portuguesa como idioma oficial. Pouco mais de uma década depois, o mesmo soberano determinava a criação dos Estudos Gerais de Lisboa, germe da mais antiga universidade lusa. A partir de 1308, a sede da instituição passou a ser alternada com a cidade de Coimbra, até seu estabelecimento, em definitivo, fora da capital, em 1537. Mas mesmo no século XV, quando os portugueses se lançaram à empreitada da navegação intercontinental, já havia a necessidade de aprimorar conhecimentos, construir naves sólidas e, também, refinar os instrumentos para localização a partir da observação do céu.

Exploração dos saberes nas colônias de além-mar

Escrito em 1563, o primeiro tratado de Medicina Tropical, que descreve doenças como a cólera, é de autoria de um português: o médico e botânico Garcia da Orta. Além de descrever a sintomatologia e o desenvolvimento das enfermidades, Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia apresentava espécies de plantas para tratamento até então desconhecidas no Ocidente, bem como suas aplicações farmacológicas. A importância da obra fez com que, quatro anos mais tarde, ela viesse a ser traduzida para vários idiomas, por iniciativa do pesquisador belga Charles L’Escuse.

Quem também se destacou na área médica foi José Pinto de Azeredo, nascido no Rio de Janeiro em 1764, e que estudou na Escola de Medicina da Universidade de Edimburgo, na Escócia, considerada uma das melhores do mundo. Depois de um breve período em sua cidade natal, e de ser nomeado físico-mor do Reino de Angola, em 1790 seguiu para Luanda. De sua experiência no plano clínico e no teórico resultou um trabalho de referência, intitulado Ensaios sobre Algumas Enfermidades de Angola, publicado pela Régia Oficina Tipográfica de Lisboa, nove anos mais tarde. A obra, em quatro partes, determina causas e indica tratamento para febres locais, febres intermitentes, disenteria e tétano.

O estreitamento das relações entre os portugueses, as populações asiáticas e africanas fez com que o português se tornasse uma espécie de língua franca, assim como é o inglês na atualidade. Segundo Kapil Raj, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, a língua portuguesa era o idioma científico na Índia, no século XVIII, muito em razão de que as centenas de idiomas falados até hoje, naquele país, dificultassem a comunicação das populações locais com os demais colonizadores europeus. O português era a linguagem do conhecimento, da diplomacia, da ciência, utilizado pelos ingleses na realização de contratos e para a redação, principalmente, de textos botânicos. “O processo de globalização, até mesmo depois que os portugueses foram embora, continua, ainda, a operar através desse idioma”, garante o pesquisador.

pirarucuO dossiê “Medicina no contexto luso-afro-brasileiro”, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Fiocruz, aprofunda a importância da atuação dos portugueses no fazer científico. De acordo com Ana Cristina Roque, no fim do século XIX, em Moçambique, as principais enfermidades, procedimentos e métodos de tratamento já eram cuidadosamente registrados.

Primeiras produções científicas no Brasil

A reforma estatutária da Universidade de Coimbra, feita em 1772, determinou o ingresso das Ciências Naturais no currículo da instituição. Entre outras medidas, por decisão da Coroa, era necessário promover o fortalecimento de academias científicas, estabelecer jardins botânicos e planejar as chamadas “expedições filosóficas”. A medida também facilitou o ingresso de estudantes provenientes da colônia da América do Sul. “Infelizmente, os naturalistas luso-brasileiros formados neste período são escassamente conhecidos”, afirma Maria Elice Brzezinski Prestes, autora do livro A Investigação da Natureza no Brasil Colônia.

Uma das expedições mais memoráveis foi realizada pelo baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, que durante dez anos percorreu do interior da Amazônia à região de Mato Grosso. Ao longo da empreitada, ele escreveu uma obra de vulto, que fazia o inventário de boa parte da flora e da fauna brasileiras: o Diário da Viagem Filosófica. Mais tarde, o levantamento serviu de base para o desenvolvimento dos estudos em História Natural em Portugal.

Da expedição, que era composta por quatro pessoas – além do naturalista, integravam o grupo um jardineiro botânico e dois desenhistas, chamados, à época, de riscadores –, apenas Alexandre e um dos desenhistas regressaram com vida. Além de coletar espécimes e prepará-los para o envio à metrópole, cabia ao grupo identificar riquezas minerais passíveis de extração, com referências de latitude e longitude, o que deixava claro serem os interesses portugueses não apenas científicos, mas também mercantilistas.

No mesmo período, o pernambucano Manuel Arruda da Câmara ocupou o cargo de naturalista-viajante ou naturalista-peregrino, oficialmente criado pela Coroa. Formado em Filosofia Natural pela Universidade de Coimbra, era, também, doutor em Medicina pela Universidade de Montpellier, na França. Suas atribuições iam da classificação aos estudos de Fisiologia, Anatomia, História Geográfica e Geologia, e ele deixou uma vasta obra publicada.

“O Brasil só tardiamente foi palco para o desenvolvimento das ciências, o que se deu apenas com a vinda da família real para o Rio de Janeiro, no início do século XIX”, lembra Maria Elice. De fato, é possível identificar uma esparsa produção, até então. A começar pelos relatos do ciclo dos cronistas e missionários, como Hans Staden e José de Anchieta. As primeiras contribuições verdadeiramente científicas partiram dos naturalistas trazidos com a comitiva de Maurício de Nassau, que governou a colônia holandesa em Recife entre 1637 e 1644. No século XIX, o Brasil entrou na rota de expedições naturalistas estrangeiras e registrou a passagem de nomes como Charles Darwin e Carl von Martius.

No século XVII, o Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda (RMJBA) promoveu expedições científicas ao Brasil, Cabo Verde, Angola e Moçambique. Esse acervo se encontra, atualmente, sob a guarda do Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa/Museu Nacional de História Natural e da Ciência, e se constitui, basicamente, de correspondências, descrições e relatórios – as chamadas “memórias” – , além de listagens de amostras enviadas das colônias a Portugal.

O português hoje

Ao longo dos séculos XV e XVI, os colonizadores portugueses levaram a língua pátria a quatro continentes: América do Sul (Brasil), África (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Mombaça, Zanzibar e Moçambique), Oceania (Timor e Java) e Ásia (Goa, Damão, Diu e Macau). Estima-se que a população mundial de falantes do idioma seja, atualmente, de 270 milhões de pessoas, e que chegue a 350 milhões até o fim deste século. Ao lado do inglês, chinês, árabe, espanhol, francês e russo, há anos se pleiteia que a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheça o português como idioma oficial.

Além do mais, segundo Guilherme d’Oliveira Martins, em artigo publicado no Observatório da Língua Portuguesa, “a língua constitui um elemento de crescente importância quando falamos de criação econômica”. O português é a terceira língua europeia mais falada, atrás, apenas, do inglês e do espanhol, e tem difusão universal. O estudioso lembra a previsão de aumento significativo em número de falantes e, portanto, maior responsabilidade para as economias de língua portuguesa, no sentido da valorização da educação nesses países.

 
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