De ritmo inventado nas rodas do bairro do Estácio e apropriado pelas nascentes escolas de samba para animar seus desfiles, o samba-enredo foi, por muito tempo, sinônimo do carnaval da cidade do Rio.
Assim como os sambas de partido alto e de terreiro, trata-se de uma forma de expressão, um modo de socialização e referencial de pertencimento. Não à toa, foi declarado, em dezembro de 2016, patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, como as escolas de samba também já haviam sido classificadas.
Por meio da riqueza poética e beleza de sua letra e melodia, o samba-enredo conduz o conjunto da agremiação com sua animação e cadência. De acordo com Luiz Antonio Simas e Alberto Mussa, autores do livro Samba de Enredo, História e Arte, trata-se do único gênero épico genuinamente brasileiro que nasceu e se desenvolveu espontaneamente, sem ter sofrido a mínima influência de qualquer outra modalidade épica, literária ou musical.
Como tudo começou
Com a criação das primeiras escolas, no final da década de 1920, o samba se adaptou às necessidades do desfile, que começou a ser realizado no início dos anos 1930. Inicialmente duravam, no máximo, 15 minutos, e não havia limitação a um único samba, nem obrigatoriedade de vínculo entre samba e enredo.
Aos poucos, criou-se uma nova estética e uma nova modalidade, em que os compositores elaboravam seus versos com base no tema (enredo) a ser apresentado pela escola. A primeira parte era fixa e a segunda improvisada, até que ambas passaram a historiar um só acontecimento – fórmula que se tornou obrigatória na década de 1940 – e foi proibida a improvisação de versos, o que fez com que o samba-enredo chegasse pronto à avenida.
As primeiras composições
Existe uma polêmica em torno de qual teria sido o primeiro samba-enredo da história. Há quem considere O Mundo do Samba (1933), de Nelson de Morais, da Unidos da Tijuca; e também quem liste entre as raras produções dos anos 1930: Asas para o Brasil (1938), de Antenor Gargalhada, da Vermelho e Branco Salgueiro, e Homenagem (1938), de Carlos Cachaça, da Estação Primeira de Mangueira.
Outra obra que se destaca nesse contexto é Teste ao Samba (1939), de Paulo Benjamin de Oliveira, popularmente conhecido como Paulo da Portela, um dos fundadores da escola de Madureira. Segundo Sérgio Cabral, jornalista e pesquisador, “a grande sensação” e ineditismo da Portela foi apresentar seus componentes “com fantasias inteiramente voltadas para o enredo”, à exceção da ala das baianas, do mestre-sala e da porta-bandeira.
De outro lado, Simas e Mussa acreditam que, embora essas obras versem sobre o enredo eleito pela escola, elas têm estrutura métrica e melódica similar a dos sambas de terreiro. Sobre o enredo da Tijuca, afirmam ainda que os versos “parecem indicar que se trata da primeira parte fixa do samba, sendo a segunda livremente improvisada durante a evolução”, o que os faz considerar a composição “precursora do samba-enredo”, mas não o primeiro.
Na visão dos autores, 61 Anos de República (1951), de Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira, do Império Serrano, seria a obra inaugural, a partir da qual tornou-se impossível confundir um samba-enredo com qualquer outro gênero de samba. Esta composição é, inclusive, um exemplo do que ficou conhecido como samba-lençol, ou simplesmente lençol, que marcou os anos 1950: composições longas que contavam a história oficial de maneira detalhada, “cobrindo” o desfile.
Mas as considerações parecem variar de acordo com o ângulo adotado pelo pesquisador. Walnice Nogueira Galvão, crítica literária e professora da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, aponta Exaltação a Tiradentes (1949), de Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau, do Império Serrano, como a obra inaugural, ainda que não contivesse, segundo ela, todos os elementos do samba-enredo moderno.
A ideia é compartilhada por Rachel Valença, escritora e pesquisadora. Ela ressalta, ainda, que este foi o primeiro samba-enredo a ser ouvido como música de carnaval. De acordo com Rachel, apenas seis anos depois de cantada, a composição ganhou divulgação suficiente a ponto de cair no gosto do grande público e ser entoada fora do âmbito do desfile.
O início dos desfiles e a temática dos enredos
Em 1934, foi criada a União das Escolas de Samba (UES), primeira instituição que reunia as agremiações. Em carta ao prefeito do Rio de Janeiro à época, Pedro Ernesto, dizia que as escolas de samba seriam “núcleos onde se cultiva a verdadeira música nacional imprimindo em suas diretrizes o cunho essencial de brasilidade”. Uma clara tentativa de ganhar a simpatia do governo; afinal, exaltar valores nacionais era uma estratégia para buscar reconhecimento formal das escolas e uma forma de o sambista encontrar a aceitação social pretendida.
Quando, em 1935, o desfile passou a ser promovido oficialmente pela prefeitura da cidade, tornou-se uma exigência que o enredo da escola abordasse assuntos nacionais e pátrios, o que perdurou por décadas e foi determinante na composição da canção do carnaval.
A história social, cultural e política do Rio de Janeiro e do Brasil influenciou a evolução do gênero, pautando as decisões das escolas de samba na escolha dos enredos. Durante a Era Vargas, temas que ajudassem a difundir a história oficial eram vistos com bons olhos. Isso explica os enredos sobre eventos como a chegada da corte de Dom João, a fundação do Rio de Janeiro e personagens como Duque de Caxias, General Osório e Princesa Isabel.
Apenas a partir dos anos 1950 as referências à cultura afro-brasileira começaram a aparecer nos enredos. O destaque se deu na década seguinte, especificamente em 1960, quando Fernando Pamplona foi convidado para fazer o carnaval do Salgueiro. No ano anterior, como jurado do desfile, ele havia se encantado com o enredo que a escola apresentou sobre o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que fugia das habituais temáticas sobre políticos e militares da época. Pamplona foi responsável pelo desenvolvimento de enredos sobre a história de negros, como Zumbi dos Palmares, Chica da Silva e Chico Rei. Pela primeira vez, heróis negros eram cantados. Antes disso, era clara a preferência dos compositores por temas históricos e literários que tomassem como referência a cultura “branca”, oficial.
Aos poucos, lendas e festas populares também passaram a figurar entre os enredos.
A presença do refrão e o envolvimento do grande público
Em 1967, uma importante e sutil alteração se introduziu no samba-enredo – embora não tenha sido percebida de imediato – por meio de Carnaval de Ilusões, de Martinho da Vila e Gemeu, da Vila Isabel: a presença de um estribilho, ou seja, versos repetidos, como se fosse um refrão:
Ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta
Volta e meia vamos dar
[...]
Como naquela época os sambas não eram gravados antes do carnaval, e o público os ouvia pela primeira vez na hora do desfile, um refrão conhecido era um belo recurso para cativar o público das arquibancadas. Mas o samba não fez sucesso e até levou nota baixa do jurado do quesito samba-de-enredo, o compositor Chico Buarque de Holanda.
No entanto, a inovação trouxe a concepção de que era preciso conquistar a participação da nova plateia, que se formava para prestigiar o espetáculo.
A partir da década de 1970, os enredos se diversificaram e as composições passaram a ser mais curtas e com refrão forte, fruto do momento em que o gênero começava a ser gravado – e via ter início seu processo de aceleração. Os sambas-enredo passaram a imperar nos rádios, discos e televisões.
No desfile de 1971, a Acadêmicos do Salgueiro trouxe Festa para um Rei Negro, de Zuzuca. Conhecido como Pega no Ganzê, rompeu com a estrutura do samba-enredo, trazendo versos repetidos ao fim de cada estrofe, andamento mais característico de marcha do que de samba, três estrofes de melodia idêntica; e narrativa não-linear, apenas com flashes de acontecimentos.
O-lê-lê, ô-lá-lá,
Pega no ganzê
Pega no ganzá
[...]
Ganzá é um instrumento de percussão, mas a palavra “ganzê” foi inventada pelo compositor apenas para rimar. Apesar de muito criticado, o samba – fácil de memorizar e cantar – tomou conta da cidade. Após o sucesso no carnaval, a letra foi adaptada por torcidas de clubes de futebol, sem alteração na melodia, e é entoada em estádios do Brasil e do mundo.
Alguns sambistas e pesquisadores consideravam – e outros ainda consideram – equivocada a ideia de que quanto mais curto fosse o samba, mais facilmente cairia nas graças do público e seria mais cantado. Hoje, um exemplo é Aquarela Brasileira (1964), de Silas de Oliveira, da Império Serrano, considerado um dos maiores sambas-enredo de todos os tempos e muito cantado até os dias atuais.
A disputa entre a tradição e o espetáculo
Desde os anos 1960, é notável o crescimento das escolas de samba. Com o aumento do público, foram construídas arquibancadas e as escolas passaram a desfilar com carros alegóricos maiores. Questões econômicas influenciaram cada vez mais os desfiles, que, em 1984, ganharam uma nova casa, a Marquês de Sapucaí.
A espetacularização, o afastamento das comunidades das escolas na produção do samba, o formato comercial voltado para o turismo e outras mudanças na dinâmica dos desfiles não agradavam a todos. E isso virou enredo campeão em 1982, quando o Império Serrano levou para a avenida o clássico Bum Bum Paticumbum Prugurundum, de Beto sem Braço e Aluísio Machado, que criticava o crescimento das escolas:
Super Escolas de Samba S/A
Super-alegorias
Escondendo gente bamba
Que covardia!
[...]
As críticas e o cenário atual
Tá legal, eu aceito o argumento,
Mas não altere o samba tanto assim.
Olha que a rapaziada está sentindo a falta,
De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim.
Sem preconceito ou mania de passado.
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar.
Faça como um velho marinheiro,
Que durante o nevoeiro, leva o barco devagar
(Paulinho da Viola, 1975)
Respondendo às necessidades de gravadoras e, depois, de emissoras de televisão, os sambas tiveram as letras encurtadas e o compasso acelerado – o que é criticado por sambistas desde os anos 1970. As escolas passaram a desfilar em tempos fixos, gerando uma aceleração no gênero. Para atravessar a passarela em até 75 minutos, sem atrasos ou espaços, com milhares de componentes, carros e alegorias grandiosos, comprimiu-se a escola e acelerou-se a cadência do samba.
Outra crítica diz respeito ao samba-enredo não ser determinante num desfile e na consagração da escola campeã. Ele é apenas um entre dez quesitos a serem julgados, responsável por 10% do total das notas. Mesmo com sambas que não empolguem tanto as arquibancadas, é valorizado o desfile “tecnicamente correto”.
Hoje, em geral, o samba-enredo não conta uma história, no máximo apresenta um resumo, o que prejudica a compreensão do enredo pelo público. A comissão julgadora, porém, recebe textos onde são explicados e justificados os enredos e o desenrolar destes ao longo do desfile.
O afastamento das comunidades, sobretudo no que diz respeito a composição e disputa dos sambas, é outra questão levantada. Por vezes, membros da comunidade não podem concorrer porque não conseguem arcar com os custos disso (estúdio, CDs para distribuição, ônibus fretados para torcida, músicos, bandeiras, camisetas etc). A autoria é relativizada e, em geral, o samba-enredo é o resultado de um trabalho coletivo, com equipes que chegam a ter, algumas vezes, até mais de seis elementos. Há casos em que os parceiros são incorporados ao samba por questão de disputa, por serem membros influentes na comunidade da escola, porque podem financiar etc.
O fator econômico está cada vez mais preponderante na escolha dos enredos, muitas vezes patrocinados. Isso gera desaprovação e também polêmicas. Um exemplo ocorreu em 2015, quando a Beija-Flor foi campeã falando sobre Guiné Equatorial, país que vive sob ditadura há quase quatro décadas.
Também há casos em que o enredo não agrada por ir de encontro ao interesse de alguns grupos da sociedade. Neste ano, a polêmica está com a Imperatriz Leopoldinense e seu enredo Xingu: o Clamor que Vem da Floresta, criado pelo carnavalesco Cahê Rodrigues. Em defesa dos índios, o samba causou insatisfação entre setores do agronegócio no trecho “O belo monstro rouba as terras dos seus filhos/ Devora as matas e seca os rios/ Tanta riqueza que a cobiça destruiu/ Sou o filho esquecido do mundo/ Minha cor é vermelha de dor/ O meu canto é bravo e forte/ Mas é hino de paz e amor”.
É inegável que o cenário atual é bastante diferente do passado. Os mais críticos dizem que, hoje, os sambas-enredo estão muito parecidos e comercias, e que esses são fatores que fazem com que suas letras não sejam lembradas com o passar dos anos.
O saudosismo é unanimidade quando clássicos de Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira, Martinho da Vila e Dona Ivone Lara – ditos sambistas “de ano todo”, e não apenas “compositores de carnaval” – são cantados em festas, blocos e ensaios de escolas até hoje. Foram tantos sucessos, que não faltará o que cantar. Como será o amanhã? Responda quem puder.
Fontes:
SIMAS, Luiz Antonio; MUSSA, Alberto. Samba de enredo, história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
SIMAS, Luiz Antonio; SABATO, Fábio. Pra tudo começar na quinta-feira. Rio de Janeiro: Mórula, 2015.
GALVÃO, Walnice. Ao som do samba: uma leitura do carnaval carioca. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
RAYMUNDO, Jackson. Samba-enredo, a canção do desfile de escolas de samba: um gênero épico brasileiro. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011.
VALENÇA, Rachel. Carnaval: para tudo se acabar na quarta-feira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1966.
GOMES, Antonio Henrique de Castilho. As transformações do samba-enredo carioca: entre a crise e a polêmica. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Letras, 2006.
DINIZ, André. Almanaque do carnaval: A história do carnaval, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
Fernandes, Nelson da Nobrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro, 1928-1949. Rio de Janeiro: Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
Site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.
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