O que é, efetivamente, escutar uma criança? Para Adriana Friedmann, pedagoga, mestre em Educação e doutora em Antropologia, esse processo vai muito além de ouvir o que uma criança expressa verbalmente.
Especialista em temáticas da infância, pesquisas com crianças e linguagens expressivas, ela conversa com o PORTAL MULTIRIO sobre a importância da escuta infantil, destaca os erros mais comuns cometidos pelos adultos e indica como os professores podem praticar a escuta na escola.
No contexto da pandemia de Covid-19, Friedmann fala sobre os desafios do ensino remoto para crianças menores, aponta caminhos possíveis e destaca o que é essencial no retorno às aulas presenciais.
Adriana Friedmann é criadora e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento (NEPSID) e do Mapa da Infância Brasileira. Ela é autora dos livros A vez e a voz das crianças e Linguagens e culturas infantis, entre outros.
PORTAL MULTIRIO (PM) — O que significa escutar uma criança?
Adriana Friedmann (AF) — Escutar crianças é um processo que vai muito além de escutar com os ouvidos o que uma criança possa dizer verbalmente. Diz respeito ao adulto se conectar com ela e escutar/observar o que a criança expressa por meio de suas linguagens. Por exemplo, o brincar, as produções artísticas, os corpos, os gestos, os movimentos, os comportamentos e reações, as emoções. E, claro, a partir de outras narrativas, como a palavra e/ou a escrita, quando a criança fala ou lê.
Escutar crianças tem a ver com conhecê-las de forma integral, e com o adulto estar presente e conectado, também, com o que ele próprio sente e percebe.
PM — Por meio da brincadeira, então, também é possível escutar as crianças?
AF — A brincadeira é uma das linguagens expressivas essenciais e constitutivas das crianças. É por meio do brincar que as crianças expressam, imitam, experimentam e se comunicam. É o exercício de experimentar a vida, suas preferências, suas emoções, medos, frustrações, desejos, habilidades, valores.
É a vida onde a criança tem oportunidade de criar, de inventar, de fantasiar, e a partir da qual cada criança está, de forma permanente, se expressando e transmitindo mensagens importantíssimas.
A partir do brincar das crianças, os adultos têm um campo de pesquisa incrível para escutá-las e conhecê-las. Sempre pensando nas brincadeiras espontâneas, não em situações direcionadas, em que as crianças, em geral, tentam “preencher” expectativas dos adultos.
PM — Na sua opinião, quais os “erros” mais comuns cometidos pelos adultos nesse processo de escuta?
AF — Nós, adultos, temos a tendência de “entrevistar” as crianças, fazer mil e uma perguntas. Outras vezes, de corrigir as crianças, insistir para que elas respondam o que estamos esperando ouvir. Ou, ainda, intervir nos processos espontâneos nos quais elas estão, em geral, concentradas.
Ao fazer perguntas, já estamos, de um jeito ou de outro, direcionando as respostas.
Assim, uma forma de escutar, efetivamente, é respeitando e acolhendo o jeito de cada criança se colocar, o que ela nos traz. Tentar não “interpretar”, “avaliar”, “classificar” ou “comparar” as crianças entre si.
Escutar, mesmo que possa ser incômodo, desconfortável ou que tenhamos que aceitar um silêncio, que as crianças não queiram compartilhar com a gente o que estão vivenciando.
PM — Na escola, como é possível praticar essa escuta?
AF — Para os educadores se apropriarem de uma escuta sensível, respeitosa e atenta, devem começar se escutando e escutando seus pares. O que não é tão simples, nem evidente.
Em tempos em que a “velocidade” e certo “automatismo” cotidiano invadem nossas vidas, não é fácil entrar em contato com nossas “vozes interiores”, com sentimentos que podem ser desconfortáveis ou novos para nós, com o silêncio ou com reflexões mais profundas.
Escutar as crianças na escola requer um outro tempo. Requer uma presença não somente nos momentos em que estamos “transmitindo conhecimentos, corrigindo, orientando ou direcionando atividades”. Mas presença no que eu chamo de “entre-tempos” e “entre-lugares”: naquelas situações espontâneas em que as crianças têm a oportunidade de escolher do que, com quem e onde querem brincar, conversar, produzir, ou, simplesmente, estar, ser, permanecer.
Por exemplo: entre uma e outra atividade dirigida, no recreio, nos deslocamentos — na entrada da escola, nos corredores, nos banheiros, na hora do lanche ou das refeições etc.
E que o educador esteja atento e possa registrar – escrever, de preferência – o que vê, o que sente, o que percebe das crianças. Sem emitir juízo de valor, aceitando a realidade tal qual ela se apresenta. Mais tarde, ele poderá se deter nas suas notas e refletir a respeito do que ele escutou e observou.
PM — Em tempos de ensino remoto, muitos educadores se viram diante do desafio de uma orientação educacional on-line. Como isso pode se dar, sobretudo, com as crianças menores?
AF — O ensino remoto é contraproducente para as crianças mais novas. Estudos científicos já mostraram os riscos e o quanto a tela é prejudicial para o desenvolvimento saudável das crianças.
Grande parte dos educadores têm sido muito conscientes desta inadequação e têm criado estratégias para, sobretudo, propiciar espaços de comunicação e de escuta, de forma espaçada e com tempo reduzido.
O mais indicado é fazer convites, perguntas abertas, convidar a criança a mostrar um espaço especial da sua casa ou um objeto, um brinquedo, um livro de que ela goste, alguém da família dela. E, a partir da escolha de cada criança, o educador pode criar caminhos de comunicação e de fortalecimento dos vínculos.
PM — Como encontrar um equilíbrio na relação dos pequenos com as telas?
AF — O equilíbrio é fundamental. A escolha consciente do que as crianças irão assistir na tela e por quanto tempo é uma forma de os adultos — pais e/ou professores — fazerem uma “curadoria” de conteúdos adequados e de qualidade.
Mas criança precisa, também, se movimentar, brincar, cantar, dançar, ter contato com música, com instrumentos, com artes, com histórias, com outras crianças.
As crianças precisam de ritmos cotidianos, assim como também de tempos de descanso, silêncio e solidão. Tanto em casa quanto na escola. Tempos de autonomia e de livre escolha e tempos em que aprendam a prestar atenção no que o adulto está dizendo e propondo.
PM — Com o isolamento social, muitas famílias vêm sentindo dificuldade em fazer com que as crianças cumpram as tarefas propostas pelos professores, ou até mesmo entendam que ainda há responsabilidades com a escola. Como motivar as crianças a realizar atividades escolares em casa?
AF — Quanto mais novas, mais as crianças precisam da presença dos adultos. É importante que os pais se coloquem à disposição, todo dia, pelo menos por meia hora ou uma hora, para atender às necessidades concretas das crianças, por exemplo, nas tarefas escolares.
Os adultos precisam mostrar para as crianças que, assim como eles têm responsabilidades, trabalho — seja em casa, seja fora —, as crianças também têm as delas. Devem mostrar que há tempo de livre escolha do que se quer fazer e tempo de responsabilidade.
Contar como foi a sua vivência na infância também é algo que aproxima os adultos das crianças, e é um caminho muito saudável e educativo.
Forçar e obrigar não é o caminho. Se a criança está com dificuldades, cada adulto precisa entender o que está acontecendo, de forma mais cuidadosa. E conversar em conjunto com os professores.
PM — Qual a importância e como abordar sentimentos – como o medo e a saudade, por exemplo – com as crianças?
AF — Acolher sentimentos e emoções das crianças deve ser prioridade sempre, tanto em casa, quanto na escola. E, sobretudo neste momento, no retorno aos encontros presenciais.
Porém, é importante compreender que cada criança — assim como cada adulto — tem facilidade para se expressar por diferentes linguagens, que são únicas para cada indivíduo.
Nem sempre é por meio da palavra ou da fala. Pode ser por meio da brincadeira, das artes, da música. Ou tocando um instrumento, dançando, se movimentando, representando, escrevendo, lendo etc. Todos nós temos maior ou menor habilidade com um ou outro meio.
Se a gente descobrir e respeitar o jeito de cada um se colocar da forma mais espontânea e genuína, poderemos facilitar essas expressões a partir de propostas de tempos, espaços, atividades e materiais facilitadores.
PM — O que a senhora acredita ser essencial no retorno presencial às aulas, depois de quase um ano?
AF — Neste retorno será importantíssimo criar tempos e espaços de livre expressão, como acima colocado. Precisamos entender o que as crianças têm vivenciado, o que estão sentindo, o que aprenderam, o que descobriram, no que se interessarem, como foi a vida em casa e longe dos parentes, amigos e professores. Seus medos, receios, conquistas. Enfim, reconhecer quem são e o que esse ano de isolamento trouxe para a vida de cada uma.
Será necessário dar espaço e tempo para que as crianças deem vazão a suas emoções, a seus desejos e a seus pensamentos. Para que os corpos se movimentem, para que as brincadeiras expressem, para que as crianças produzam o que estiver “guardado”.
Seria uma espécie de diagnóstico ou “anamnese”. Para podermos repensar e readequar atividades, conteúdos e cotidianos, de forma a acolher, por um lado, aprendizagens e emoções de cada criança no coletivo; e atender, por outro, possíveis “lacunas” ou traumas e outras emoções que precisarão ser cuidadas.