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O ensino da ditadura civil-militar nas escolas
13 Dezembro 2018 | Por Fernanda Fernandes
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Cartazes estudantis contra a truculência da repressão (Fonte: Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 02007 085)

O ensino da ditadura civil-militar, conteúdo de História do 9º ano do Ensino Fundamental, ainda traz desafios aos professores da disciplina. Apesar da grande quantidade de documentos históricos, materiais audiovisuais e publicações disponíveis sobre esse período, sua proximidade o torna um “tema sensível”.

“A expressão ‘temas sensíveis’ designa assuntos de um passado problemático. E um passado pode ser problemático de diversas formas. Pode se referir a um passado marcado pelo autoritarismo (como as ditaduras militares no Brasil e na América Latina) ou por elementos discriminatórios e racistas (como o governo de apartheid da África do Sul); ou a um passado marcado por violência traumática (como atos de genocídio e guerra civil). São temas sensíveis não apenas porque é difícil falar sobre eles, mas, principalmente, porque não há ainda, na maioria dos casos, um consenso da sociedade sobre o que e como falar sobre esse passado. Em muitos casos, os processos de memória, trauma e reparação ainda estão em curso e diferentes versões ainda estão em disputa — tanto na memória como na história”, explica a historiadora Maria Paula Nascimento Araújo, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no livro Ditadura Militar e Democracia no Brasil: História, Imagem e Testemunho.

O conteúdo está previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas, segundo Alessandra Carvalho, professora do setor curricular de História do Colégio de Aplicação da UFRJ (CAP-UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da UFRJ (ProfHistoria), docentes têm sofrido, nos últimos quatro anos, um maior controle sobre o que podem dizer em sala de aula.

“Hoje, infelizmente, analisar com profundidade um regime ditatorial, baseado na violência e na força, é algo que está sendo identificado como uma pauta de esquerda ou ideológica, quando, na verdade, deve ser uma pauta geral e civilizacional, sobre questões que estão na Constituição. Isso tem gerado uma tentativa cada vez maior de vigilância sobre o que os professores ‘podem’ dizer sobre a ditadura. Mas documentos oficiais do Brasil, feitos em diferentes governos, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais, apontam para a educação e a escola como direito fundamental de fortalecimento da democracia”, destaca Alessandra Carvalho. 

Charge de Laerte (Fonte: Acervo Cedem – Unesp)

E como abordar a questão com certo distanciamento ou objetividade? Para Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de História da UFRJ, o primeiro ponto é que não se coloca a questão da paixão, nem da objetividade ou subjetividade, em um tema sobre o que não há a menor dúvida de que não deve nunca mais se repetir.

“Como alguém pode ser ‘desapaixonado’ diante da supressão do direito das pessoas, dos direitos humanos e do direito de escolha de cada um? Então, partimos de um pressuposto de que todas as formas de ditadura são efetivamente formas que têm uma recusa completa da sociedade brasileira. Não é preciso se preocupar com a objetividade ou o distanciamento porque tratamos de um tema que é alvo de uma condenação geral. A Constituição do Brasil estabelece que o poder emana do povo e deve ser manifestado livremente pelo povo”, argumentou o docente, na aula inaugural Ditadura brasileira, disponibilizada na galeria de vídeos do Portal Memórias Reveladas, coordenado pelo Arquivo Nacional, da Casa Civil da Presidência da República.

Ainda de acordo com Francisco Carlos da Silva, não se deve culpar pessoas, desqualificar falas e os lugares dessas falas, mas sim promover uma discussão.

“A escola tem que trazer o debate através de um método que acredito ser o único possível: um método que leve as crianças a produzirem suas próprias perguntas. Quando fizerem isso, elas terão condições de ter respostas. Não cheguemos com respostas prontas, mas sim com estruturas e ferramentas que possibilitem as perguntas”, propõe.

A ditadura civil-militar no Brasil

Uma das questões suscitadas acerca do tema da ditadura está relacionada aos termos usados para se referir ao período que vai de 1964 a 1985 no Brasil. Para Samantha Quadrat, professora do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), o termo que se adota representa a visão de cada um sobre o que foi esse período da História. “’Revolução’ é uma nomenclatura muito usada por pessoas mais velhas, endossa o discurso dos militares e sugere concordância. Porém, pesquisas e diversos trabalhos acadêmicos indicam o uso de ‘ditadura’, por ter sido um momento de exceção, cerceamento de direitos políticos e civis do povo brasileiro, com a censura, a coerção, a perseguição a funcionários públicos. Há uma polêmica completamente equivocada quando um representante da lei, por exemplo, refere-se ao período como ‘movimento de 1964’”, explica a historiadora, referindo-se à fala do ministro do Supremo Tribunal Federal José Antonio Dias Toffoli, em 1º de outubro deste ano.

Mobilização de tanques no Rio de Janeiro, em abril de 1964 (Fonte: Arquivo Nacional, Correio da Manhã)

Samantha Quadrat aponta que, atualmente, a discussão maior é sobre o peso da participação de civis, o que implica na adoção do termo “ditadura militar” ou “ditadura civil-militar”. “É uma questão interpretativa. Há quem acredite que, pelo fato de os militares ocuparem os principais cargos, eles é quem ditaram mais as regras, mas, para mim, tratou-se de uma ditadura civil-militar. Houve a participação de representantes de diferentes religiões, de parte da sociedade que, movida pelo medo, compactuava com o regime autoritário; de empresários, cujo interesse era lucrar mais atacando as leis trabalhistas etc.”, explica, em concordância com o termo adotado pela BNCC.

A historiadora destaca que o governo militar usou a censura e a propaganda para passar uma imagem positiva. “Casos de corrupção não vinham à tona, e as pessoas achavam que não havia corrupção. Mas isso não é verdade. Muitas empresas foram beneficiadas, e também muitos militares civis, em obras como a da Ponte Rio-Niterói e da Rodovia Transamazônica”, explica.

Segundo Samantha, criou-se um imaginário de que se vivia muito melhor naquela época. “Acontece que problemas como a pobreza e a marginalização estão mais relacionados ao crescimento das cidades, não podem ser debitados a um governo. Outro aspecto é que, nos anos 1970, a questão das drogas começou a crescer, a formação do tráfico... e não se fez nada para impedir”, acrescenta.

Cartaz da anistia com trecho do poema Dois e dois: quatro, de Ferreira Gullar, 1966 (Fonte: Acervo Virtual da Anistia)

Desafios enfrentados pelos professores

Em sua opinião, os professores têm tentado trabalhar o tema de forma muito consolidada e coerente com os materiais produzidos em pesquisas acadêmicas. No entanto, ela aponta que uma das grandes dificuldades é que alguns pais, avós ou colegas de alunos, que viveram o período da ditadura, tenderem a questionar a visão e a postura do professor. “Tentam patrulhar a forma como o tema é ensinado, o que é uma afronta à educação democrática. É preciso trabalhar pela liberdade de ensino. Condenam o professor de História, mas temos que resistir”, defende Samantha, citando o caso do colégio Santo Agostinho, no qual o livro Meninos Sem Pátria, de Luiz Puntel, que tem a ditadura como pano de fundo, foi proibido, por reclamação de familiares de alunos.

Para Samantha, o ensino da História passa por temas provocadores, “como tem que ser”, e é preciso ensinar os jovens a ter estranhamento. “Ditadura é repressão, desaparecimento de pessoas, tortura, uso da máquina do Estado para perseguir oponentes políticos, mas não apenas. Outro grande desafio para quem ensina História é ultrapassar isso. Mostrar o que é, de fato, viver em uma ditadura. Mesmo uma pessoa não envolvida em movimentos políticos, pode ter sido afetada pelo fato de seu sindicato não ter podido atuar, reivindicar, para não ser reprimido. A ditadura alterou leis de ensino, promoveu forte arrocho salarial da classe trabalhadora, fez mudanças nas leis trabalhistas, uma reforma trabalhista prejudicial ao trabalhador. Determinados filmes não podiam ser vistos. Só a autocensura já demonstra que uma pessoa está sendo afetada. Professores iam para as salas de aula controlando o que poderiam dizer. Ou seja, pessoas podem não ter sido torturadas, mas sofreram violências políticas.”

Letra da composição Cálice, de Gilberto Gil e Chico Buarque de Hollanda, censurada em maio de 1973 (Fonte: Arquivo Nacional, Serviço de Censura de Diversões Públicas)

Como trabalhar a ditadura militar em sala de aula

Um grande número de sites, atualmente, pode inspirar e auxiliar o trabalho dos professores, reunindo documentos oficiais, fotografias, cartazes, charges, jornais da época, testemunhos de vítimas, documentários, além de publicações como relatórios finas da Comissão Nacional da Verdade (nacional e estaduais) e planos de aula. Entre eles: Memórias Reveladas, o site do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar do IFCS/UFRJ, o História da Ditadura e o Memórias da Ditadura.

Letras de músicas de cunho social, como Cálice, de Gilberto Gil e Chico Buarque, O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, e Caminhando (Pra não dizer que não falei das flores), de Geraldo Vandré; além de filmes, como Barra 68, sem perder a ternura (classificação indicativa: livre); O ano em que meus pais saíram de férias (10 anos), O dia que durou 21 anos (12 anos), Cabra marcado para morrer (12 anos), Zuzu Angel (14 anos) e O que é isso companheiro? (14 anos) e até mesmo um trecho de Toy Story 3 também são materiais bastante utilizados por professores.

Samantha Quadrat aponta, ainda, a possibilidade de os docentes proporem pesquisas sobre o impacto da ditadura em bairros e favelas cariocas, um dos temas abordados no relatório da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio). “Há trabalhos que demonstram que favelas cariocas sofreram de diferentes formas sob a ditadura, como, por exemplo, com políticas de remoção, que começaram antes mesmo de 1964. O professor pode pedir que os alunos falem com associações de moradores sobre o impacto do governo militar no bairro ou região em que a escola está localizada. Também há ruas no Rio com nomes de pessoas mortas e desaparecidas no período da ditadura, outra possibilidade de abordagem”, sugere a historiadora.

Capa do Jornal do Brasil de 30 de setembro de 1982. Na premiada fotografia de Luiz Morier, intitulada “Todos Negros”, e comparada pelo periódico a gravuras de Debret do Brasil Colônia, um policial escolta um grupo de homens negros amarrados por uma corda pelo pescoço, durante blitz realizada no Engenho Novo, alegando não ter algemas para todos (Fonte: Biblioteca Nacional)

Leia mais: Lugares de memória relacionados à ditadura no Rio de Janeiro

Na visão de Alessandra Carvalho, professora do CAP-UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da UFRJ (ProfHistoria), a maneira como o período da ditadura civil-militar é abordado nos livros didáticos é pouco atrativa aos alunos.

“A separação por períodos presidenciais torna o ensino muito desinteressante para os alunos. Mas os professores podem propor abordagens mais amplas. Pensar, por exemplo, em trabalhar por décadas, de 1964 a 1973 e de 1974 a 1985; por assuntos como a economia ou o aparelho repressivo; ou, ainda, buscar temas mais próximos dos alunos, relacionados à juventude, que podem produzir significado para eles, como o controle e a repressão ao movimento negro, incluindo a eventos como bailes black realizados pela cidade”, sugere a docente, indicando a leitura do relatório da CEV-Rio, que também aborda questões referentes ao movimento negro.

Assim, a professora do CAP-UFRJ propõe que se amplie o conhecimento dos alunos sobre a ação da ditadura e indica o trabalho com o livro Infância roubada, que reúne 44 testemunhos de crianças atingidas pela ditadura, colhidos pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”; com letras de sambas menos conhecidas, censuradas por falar da pobreza, por exemplo; e um exercício sobre censura com a turma. “Peça que os alunos componham um rap abordando o momento atual do Brasil; e faça essa composição passar pelo crivo da figura de um censor, que pode ser outro aluno. Faça com que eles imaginem um cenário no qual as músicas que ouvem tivessem que ser aprovadas por alguém”, propõe Alessandra Carvalho.

Informe confidencial do Iº Exército enviado para o DOPS solicitava o monitoramento dos bailes black e das equipes de som (Fonte: APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: DGIE, Pasta: 232. Comissão da Verdade Rio)

Alessandra acredita em uma abordagem que contraponha os conceitos de ditadura e de democracia. “A dificuldade nisso é que a democracia é uma experiência de vida, mais do que uma construção conceitual dentro de sala de aula. Ela tem que ser vivida, experimentada e debatida para se transformar em uma compreensão do aluno. E isso traz uma provocação: em quais situações dentro da escola o aluno vive essa democracia? Professores, coordenadores pedagógicos e diretores devem pensar sobre isso e buscar um espaço para a experiência de mobilização e participação dos alunos na escola. Quando você vive a democracia, vive experiências que se transformam em conquistas e avanços, você tende a saber, de fato, o que ela é, e a valorizá-la.”

A historiadora sugere, ainda: o uso de histórias de vida e a escrita de pequenas biografias de diferentes pessoas que sofreram com a violência da ditadura; a produção de memes, usando uma linguagem da internet, a partir de pequenos textos; análises sobre as propagandas, usadas como meio fundamental para regimes ditatoriais conseguirem apoio; e pesquisas sobre dados econômicos da época.

“Apesar de todos os pesares, é fundamental apostar na relação entre professor e aluno. Cabe a nós preparar-nos da melhor forma, buscar novos materiais e acreditar que é possível construir um diálogo de escuta e troca com o aluno.”

 
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