Durante quase dois séculos, de 1763 a 1960, o Rio de Janeiro foi a capital e a grande porta de entrada do Brasil. A história de sua transformação no maior centro administrativo e comercial da colônia, e posteriormente do país, começou a ser delineada, segundo a historiadora Maria Fernanda Bicalho, da Universidade Federal Fluminense (UFF), ainda durante o período da União Ibérica (1580-1640). Na época, alguns povoadores da cidade conquistaram contratos de Asiento, que lhes permitiram explorar o tráfico negreiro em Angola e ter acesso privilegiado ao porto de Buenos Aires, de onde os escravos eram enviados para trabalhar nas minas do Peru.
Esse fato conferiu um importante papel de articulação comercial à cidade, desde as primeiras décadas de sua fundação. Não por acaso, logo após o fim da União Ibérica, Salvador de Sá e Benevides, várias vezes governador do Rio de Janeiro, passou a insistir – junto a D. João IV, rei de Portugal – sobre a necessidade de se colonizar as terras ao sul, até o Rio da Prata, para se construir, nelas, entrepostos comerciais. A proposta violava o Tratado de Tordesilhas, mas a Colônia do Sacramento foi oficialmente criada em 1680. Suas vilas eram todas dependentes da cidade de São Sebastião, tanto do ponto de vista administrativo como comercial e militar e, até mesmo, religioso, já que o bispo do Rio tinha jurisdição sobre elas.
Não bastasse o papel articulador da cidade com Angola, com o sul da colônia e com a América Hispânica, a descoberta do ouro em Minas Gerais, no final do século XVII, trouxe uma prosperidade comercial ainda maior ao Rio, para onde era enviada a produção aurífera e a partir de onde saíam os principais comboios de abastecimento da região mineradora. Durante os anos 1700, a cidade foi, assim, se transformando no ponto mais importante do império português, no Atlântico Sul.
Os corsários e a questão da defesa
A prosperidade do Rio de Janeiro logo despertou a cobiça dos europeus. Desde o início do século XVIII, corsários passaram a frequentar a Baía de Guanabara e a costa da capitania, a fim de saquear navios, o ouro produzido em Minas Gerais e outras riquezas, como o açúcar. Um deles, o francês Jean-François Duclerc, comandando uma pequena armada e cerca de 1.000 homens, atacou a cidade em setembro de 1710. Foi derrotado pela população alguns dias depois, após enfrentamentos ocorridos nas ruas, mas, no ano seguinte, outro corsário francês, René Duguay-Trouin, foi mais bem sucedido.
Encabeçando uma esquadra de 15 navios armados com canhões e mais de 5.500 homens, além de outras embarcações de apoio, invadiu a Baía de Guanabara e assumiu, por dois meses, o controle do Rio de Janeiro. Nesse período, promoveu inúmeros saques, atos de vandalismo, assassinatos, estupros, incêndios e pilhagens de residências e igrejas. Só abandonou a cidade após o pagamento de um polpudo resgate negociado com o então governador Francisco Castro Morais.
O episódio da invasão comandada por Trouin deixou marcas traumáticas na população e na administração da capitania fluminense. No livro O Porto e a Cidade: o Rio de Janeiro entre 1565 e 1910, Maria Isabel Lenzi e Núbia Santos descrevem como a desconfiança em relação aos estrangeiros e a preocupação com a defesa passaram a fazer parte da vida urbana carioca durante várias décadas que se sucederam. E isso não era apenas uma consequência da experiência vivida. Na Europa setecentista, circulavam vários diários de viagem que detalhavam em minúcias o sistema de defesa do Rio.
Uma muralha de proteção à cidade acabou sendo construída, apesar da solução ter ficado longe de ser um consenso. Uma das grandes oponentes da ideia foi a Câmara Municipal, cada vez mais pressionada pela necessidade de ampliar a oferta de terrenos para a construção. Mas o governador da época, Luís Vahia Monteiro, alegando motivos de segurança, manteve a proibição de se erguer prédios urbanos fora do perímetro do muro. No entanto, a ordem não resistiria por muitos anos, já que a prosperidade da cidade era acompanhada de rápido crescimento populacional e consequente ampliação da demanda por terrenos para alocar novas residências e lojas de comércio.
O crescimento da cidade
O aumento da população, da riqueza e da importância do Rio de Janeiro gerou novos problemas e demandas urbanas. Alguns dos desafios relacionavam-se ao abastecimento de água potável, ao saneamento, à necessidade de novos arruamentos, etc. A cidade setecentista também lutava, constantemente, contra os alagamentos de lagoas, pântanos e manguezais.
Em 1750, após muitas décadas de obras interrompidas e recomeçadas, o governador Gomes Freire de Andrade – o Conde de Bobadela –, finalmente, concluiu o Aqueduto da Carioca, hoje conhecido como Arcos da Lapa. As águas do novo sistema de abastecimento da cidade passaram a jorrar no aterro da Lagoa de Santo Antônio (atual Largo da Carioca), em um chafariz com 16 bicas. A partir das águas fornecidas pelo aqueduto, construíram-se vários outros ao longo do século XVIII, muitos deles assinados por Mestre Valentim, que, ainda projetou e executou, em 1763, o primeiro espaço público de lazer do Brasil, o Passeio, construído sobre o aterro da fétida e insalubre Lagoa do Boqueirão da Ajuda.
Com a riqueza circulando, inúmeras igrejas também foram construídas, reconstruídas ou redecoradas com mais luxo. A vida social da cidade, aliás, girava em torno das instituições religiosas. Os serviços de saúde, a proteção aos órfãos, às viúvas e aos desvalidos, os funerais, a marcação das horas, o abastecimento de frutas e hortaliças, a educação formal, a iluminação das vias públicas, a organização das profissões e até mesmo o lazer, enfim, praticamente tudo relacionado ao cotidiano se vinculava, de alguma forma, às igrejas, irmandades e associações religiosas.
De acordo com Fania Fridman, professora de História Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a “festa mais impressionante” da época era a Procissão dos Ossos, organizada pela Irmandade da Misericórdia, quando, na véspera de Finados, saía à noite, à luz de archotes, para enterrar os cadáveres que ficavam apodrecendo junto à forca até esse dia.
A transformação em capital
Em abril de 1761, o rei de Portugal D. José I, ordenou que o então governador do Rio, Gomes Freire de Andrade, se transferisse para Salvador a fim de tomar posse do cargo de vice-rei do Brasil. Em resposta, ele afirmou que deixar a cidade “sem cabeça” significaria uma operação de altíssimo risco, pois São Sebastião era “a mais importante joia” da Coroa Portuguesa, já que seu porto manejava as maiores riquezas da colônia.
Além da argumentação econômica, Freire sustentou que no Rio de Janeiro também estavam estabelecidas as principais forças militares do Brasil e que a localização central da cidade, na costa, era a mais adequada para acudir os territórios ao norte e ao sul. O Tratado de Madri – que redefiniu os limites do Tratado de Tordesilhas, não mais respeitado – já havia sido assinado em 1750, mas as negociações com os colonizadores espanhóis demandavam especial atenção para a manutenção e posse da Colônia do Sacramento.
Gomes Freire continuou à frente do governo carioca até sua morte, em janeiro de 1763. Em maio daquele mesmo ano, uma carta régia nomeou o novo vice-rei do Brasil, o Conde da Cunha, determinando que ele morasse no Rio. Por ter se consolidado como centro articulador da defesa, das fronteiras do território, da riqueza da colônia e se transformado em principal porto do Atlântico Sul – a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro se transformou, finalmente, na capital brasileira.
Uma das consequências desse processo histórico que colocou o Rio no centro do Hemisfério Sul foi a valorização das terras urbanas, a maioria de propriedade das instituições religiosas, que detinham, inclusive, a maior parte das casas e terrenos alugados. Segundo Fania Fridman, na época, os rendimentos advindos dessas atividades imobiliárias passaram a superar os de seus engenhos. Não à toa, o primeiro ministro português, o Marquês de Pombal, instaurou o controle do patrimônio religioso, alienando parte de seus bens.
Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro, em 1808, D. João VI instituiu a “décima”, um imposto sobre os rendimentos das atividades urbanas. O historiador Nireu Cavalcanti, autor do livro O Rio de Janeiro Setecentista, explica que, graças à documentação de cobrança desse imposto, guardada no Arquivo Geral da Cidade, “é possível formar-se uma visão bem aproximada de como era a cidade colonial”, na passagem do século XVIII para o XIX. E o que se revela é que o perímetro urbano considerado englobava o trecho que, hoje, vai da região da Tijuca (antigo Engenho Velho) à Gávea, incluindo São Cristóvão e a área que compreende a atual região portuária.
Fontes:
. O Rio de Janeiro Setecentista. Nireu Cavalcanti.
. O Porto e a Cidade do Rio de Janeiro entre 1565 e 1910. Nubia Malhem Santos e Maria Isabel Lenzi.
. O Rio de Janeiro no século XVIII: a Transferência da Capital e a Construção do Território Centro-Sul da América Portuguesa. Maria Fernanda Bicalho.
. O Aqueduto da Carioca: Paisagem de Urbanidade. Anita Correia Lima de Almeida.
. Donos do Rio em Nome do Rei. Fania Fridman.
. A Invasão Francesa em 1711 sob a Análise da Cartografia Histórica. Ricardo Vieira Martins e Carlos Alberto Lombardi Filgueiras.
. Sequestro do Rio de Janeiro, 1711: Pirata Audacioso. In: Revista Leituras de História, edição nº 79. Rose Mercatelli
25/02/2015
A pesca à baleia, a produção de jeribita e o comércio com Angola e a região do Rio da Prata eram algumas das atividades da pacata cidade de São Sebastião, que se agitava com a chegada dos navios açucareiros.
Rio Colonial
16/01/2015
Com esta matéria sobre a consolidação da fundação da cidade – que só se viabilizou após batalha ocorrida no Dia de São Sebastião, no ano de 1567 –, o Portal MultiRio dá início à série Rio Colonial.
Rio Colonial