“Nunca se esqueça das meninas em suas aulas.” Quando ouviu essa frase de uma coordenadora pedagógica da escola em que acabara de entrar para lecionar Educação Física, Marcos Vinicius Pereira Monteiro sentiu-se intrigado. Julgava suas práticas inclusivas, mas, ainda assim, não parou de refletir sobre aquilo que viria a ser a semente de sua dissertação de mestrado na área de Educação – Educação Física escolar e significados de gênero: uma pesquisa em uma escola estadual da cidade de Nova Iguaçu.
“A Educação Física consegue formar um aluno sem seguir estereótipos de gênero. Na escola, a atividade esportiva deve ser ressignificada de forma que possa servir como um instrumento educativo, e não apenas como um modelo de reprodução das relações estabelecidas na sociedade. Nenhuma menina nasce dona de casa e nenhum menino nasce jogador de futebol. No entanto, há uma naturalização de gostos e preferências”, comenta Marcos Vinicius, mestre em Educação em Ciências e Saúde – Nutes/UFRJ, professor e membro do grupo de estudos e pesquisas em Educação Física Escolar do Colégio Pedro II.
Em sua dissertação, o docente destaca o conceito de gênero que “explicita o ser mulher e o ser homem como uma construção histórico-social [...], diferenciando-se, assim, do restrito conceito biológico de sexo, que tende a explicações das diferenças entre feminino e masculino como fruto da natureza”, citando os autores Luiz Gonçalves Junior e Glauco Ramos.
Para avaliar essa questão e como ocorre a construção cultural do masculino e do feminino, Marcos Vinicius realizou um estudo a partir de entrevistas com dez alunos do 3º ano do Ensino Médio de uma escola estadual de Nova Iguaçu, divididos em quatro grupos, de acordo com o sexo e a participação nas aulas de Educação Física (os assíduos e os que nunca ou quase nunca participavam). A ideia era que, por estarem concluindo a educação básica, os estudantes refletissem sobre suas vivências escolares até ali. Após a análise de conteúdo, o autor concluiu que a Educação Física atua reforçando estereótipos, com alunos e alunas representando o masculino como superior e o feminino como frágil.
“A pesquisa foi feita com alunos do 3º ano, mas pedi que eles refletissem sobre toda a sua vida escolar. Segundo eles, a Educação Física foi ficando ‘mais chata’ a partir do 6º ano, quando jogos e brincadeiras foram cedendo lugar a modalidades esportivas. A partir da fala dos entrevistados, as conclusões do artigo podem ser aplicadas ao segundo ciclo do Ensino Fundamental”, pontua.
Segundo o professor, meninas, em geral, acabam se autoexcluindo mais das aulas e se retraindo, sobretudo a partir do 6º ano. “Essa é uma construção cultural que vem antes mesmo de a criança chegar à escola. Vem dos primeiros brinquedos oferecidos às crianças, da ideia de que a mulher cuida da casa e da família”, pontua.
No artigo Gênero e naturalização das diferenças na Educação Física escolar, Marcos Vinicius conclui que “se ao final do Ensino Médio a grande maioria dos excluídos são as meninas, tal fato ocorre porque a escola falhou em promover espaços de igualdade de gênero para o desenvolvimento motor [...], apenas reproduziu (ou aumentou) uma desigualdade que já existia antes de esses alunos entrarem nela”.
O futebol jogado nas escolas: “brutalidade” e erros comuns
Sobre a modalidade mais popular entre os brasileiros, o professor conta que um dos alunos entrevistados afirmou que “o futebol é bruto” e, então, “se for misturar menino e menina não vai dar certo”.
“Mas será que o futebol é bruto ou o futebol praticado na escola é bruto?”, confronta o educador. “Nada garante que só o menino vá machucar a menina. E um jogo apenas entre homens também não garante que ninguém vá se machucar.”
Na visão de Marcos Vinicius, os professores podem intervir e propor mudanças ao abordar a modalidade. “As regras não precisam ser hierarquizadas. Um erro comum é estabelecer em uma partida que só vale gol de menina ou que gol de menina vale como dois. Elas não são inferiores. E, dessa forma, inverte-se a exclusão. Outro erro é pedir que os meninos organizem as meninas para jogar, partindo do pressuposto de que eles entendem mais do que elas, e comandam.”
O docente ressalta, no entanto, que isso não significa que meninas não possam jogar apenas entre elas. “Não é algo excludente. Deve-se propiciar essa prática também, visto que algumas preferem dessa forma, sentem-se mais à vontade.”
Ao trabalhar o futebol, Marcos Vinicius explora técnica, tática e também uma atividade adaptada. “Uso uma bola de guizo, vendo metade dos alunos e a outra metade deve guiar um companheiro que não esteja enxergando. Eles dão as mãos, fazem silêncio, cuidam do colega e percebem a dificuldade por que passam deficientes visuais”, descreve.
Por uma Educação Física inclusiva
Um caminho apontado por Marcos Vinicius é a prática coeducativa, que, segundo ele, vai além de uma aula mista. “Ela problematiza, toca nos pontos de naturalização. Implica discutir construções culturais dentro da aula. Quando questionamos os alunos, percebemos que eles são moldados em estereótipos. Futebol é coisa de homem? Mas e as mulheres que jogam? Mostro, por exemplo, que uma modalidade esportiva pode ser mais praticada por homens em um país e por mulheres em outro”, explica.
Na visão do professor, o espaço para debate ainda é subutilizado nas aulas de Educação Física, apesar de as possibilidades serem inúmeras. Durante a Copa do Mundo no Brasil, quando alguns jogadores choraram com a derrota, Marcos Vinicius relata que questionou com os alunos a máxima de que “homens não choram”. Também propôs uma discussão sobre remoções e gastos públicos para a realização do evento.
“Levo textos, reportagens e exemplos da vida real, como a lutadora Kyra Gracie, vinda de uma família de lutadores, mas que disse, em entrevistas, ter sofrido com o machismo em casa por querer lutar; ou destaco casos como o da seleção feminina de handebol, que conquistou a primeira medalha em mundiais na história da modalidade”, exemplifica.
Uma crítica levantada pelo professor é o valor exacerbado dado à vitória nas aulas, e não ao prazer de se movimentar. “A nossa cultura tende a premiar os vitoriosos, mas a Educação Física escolar não deve fazer sobressair o melhor – ela é um espaço de vivências. Nunca proponho que o time vencedor continue jogando, por exemplo. Pelo contrário: ou troco as duas equipes ou deixo o time perdedor em campo, até para aprenderem com os erros.”
Em suas aulas, Marcos Vinicius diz não se basear no rendimento dos alunos e variar as habilidades exigidas, a fim de incluir mais estudantes e fazê-los perceber que podem ter dificuldades em uma atividade e ser bons em outra. Além disso, para seduzi-los, o professor faz com que ficar fora da aula seja mais chato do que participar.
“Eu digo a eles que a Educação Física é uma disciplina obrigatória, como todas as outras. Não dá para dizerem que não gostam e se negarem a participar. No início do ano, faço um contrato com eles, estabelecendo um número X de aulas a que eles podem faltar – por razões de saúde, indisposição ou o que for. Mas quem fica de fora tem que escrever um relatório, responder algumas perguntas, descrever a aula. Ou seja, eles acham isso chato e acabam preferindo participar da aula”, comenta.
Marcos Vinicius acredita que as novas gerações de professores estejam mais preocupadas em promover a inclusão. Em sua tese de doutorado, ele investiga a formação inicial dos docentes quanto a questões de gênero. “Com tantas polêmicas e ideias erradas sobre gênero circulando, será que eles foram preparados para essa discussão? Durante minha formação (na UFRJ, de 2000 a 2003), por exemplo, só uma disciplina abordou esse tema.” Por fim, deixa uma mensagem aos colegas de profissão. “Se pudesse provocar uma reflexão, diria o mesmo que ouvi daquela coordenadora: ‘nunca se esqueçam das meninas em suas aulas’.”
Fonte:
http://www.nutes.ufrj.br/mestrado/arquivos/Dis.MarcosViniciusPereiraMonteiro.pdf