Em 2018, Cumbe, história em quadrinhos que mostra a resistência negra contra a escravidão no Brasil durante o período colonial, recebeu o Eisner Awards, considerado o Oscar da área, por melhor obra estrangeira nos Estados Unidos. Já Angola Janga – uma história de Palmares, sobre o maior quilombo do Brasil colônia, ganhou o concurso nacional HQMIX, nas categorias desenhista, roteirista e edição nacionais, além de destaque internacional.
Os livros são do mesmo autor: Marcelo D´Salete, um paulistano de 39 anos, nascido na Zona Leste e que sempre estudou em escola pública. Cursou Design Gráfico na Escola Técnica Estadual Carlos de Campos, no Brás; licenciou-se em Artes Plásticas pela ECA-USP e é mestre em Estética e História da Arte pela mesma universidade. Atualmente, além de artista reconhecido pela crítica especializada, é professor de Artes Visuais da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP.
Cumbe, de 2014, possui edições em Portugal, França, Áustria, Itália e EUA. Em Portugal, a HQ foi selecionada para compor o acervo de publicações do Plano Ler +, que trata a leitura como “prioridade política nacional, tomando esta competência como básica para o acesso plural ao conhecimento e ao enriquecimento cultural”.
Angola Janga – uma história de Palmares é de 2017 e possui versão para o francês pela editora Çà et Là. A antropóloga Lilia Schwarcz escreveu na Folha de São Paulo sobre o livro: “Palmares é um ícone para a construção de outras histórias e memórias do país. Com Angola Janga ele ganha, finalmente, imagem e imaginação”. Os títulos vêm do quimbundo (língua falada em Angola) e significam respectivamente luz e Pequena Angola.
O Portal MultiRio entrevistou Marcelo D´Salete sobre sua trajetória, seus livros e o ensino de cultura afro-brasileira nas escolas.
Portal MultiRio: Como começou a desenhar profissionalmente?
Marcelo D ´Salete: Eu comecei a trabalhar profissionalmente com desenho, com ilustração, por volta de 1997,1998, numa editora de livros didáticos. Fiquei muito feliz com essa primeira experiência, mas, por outro lado, trabalhava oito horas por dia com desenho e foi um desafio muito grande conseguir ficar tanto tempo diante de uma prancheta. Foi positivo para ter o hábito do desenho e para realizar mesmo quando não estou com grande inspiração. E acredito que o trabalho artístico é muito trabalho e um pouco de inspiração, não somente inspiração.
PM: Você pesquisou durante 11 anos para Angola Janga. Como fez isso? Há pouca bibliografia confiável, não é?
MD: Existem alguns historiadores que já falaram sobre a história de Palmares: Ernesto Ennes, Edison Carneiro, Flávio Gomes, Décio Freitas, Ivan Alves Filho, para ficar apenas em alguns nomes mais conhecidos. Tem outros mais recentes. Grande parte dos documentos a que esses autores se atêm são de autoria dos soldados que foram destruir Palmares. O desafio que tive, utilizando a ficção, foi, a partir disso, criar personagens e imaginar como seria Palmares por dentro. Os documentos históricos e os historiadores ajudam a compreender o que se passou. Recorri também a pesquisas sobre as culturas dos povos que vieram para cá nos dois primeiros séculos, principalmente de origem angolana e do Congo.
PM: Qual o seu objetivo com Angola Janga e Cumbe?
MD: A minha intenção com esses livros era falar sobre o Brasil do século XVII, sobre conflitos envolvendo a população escravizada, os “senhores” e outros grupos sociais daquele meio; e elaborar histórias que eu gostaria de ter lido na minha juventude sobre Palmares, sobre essa experiência negra na história do Brasil. Como é que foi esse processo? Como foi essa presença? Considero que ainda conhecemos pouco esses momentos. Grande parte da bibliografia é mais acadêmica. São poucos os trabalhos ficcionais, embora já se tenha alguns filmes e histórias em quadrinhos, um pouco mais antigas. Então, considero que a nossa geração também tem que realizar as suas leituras sobre o que pode ter sido Palmares, utilizando a ficção para isso. Acho que é um meio totalmente nobre, interessante e necessário para criar esse universo, esse ambiente sobre Palmares. Os leitores de hoje merecem conhecer essa história.
PM: O conteúdo dessas duas obras é adequado para qual faixa etária?
MD: Penso que o conteúdo dessas histórias, Angola Janga e Cumbe, seja adequado para alunos a partir de 12 anos. Tenho alunos nessa faixa de idade, entre 11 e 12 anos, às vezes do 6º ano, mais precisamente a partir do 7º ano, quando já têm um arcabouço maior do que é a História do Brasil, que conseguem fazer leituras bem interessantes sobre os livros. Já me falaram que foi uma das principais leituras que fizeram sobre quadrinhos. Isso foi muito interessante porque inicialmente a minha proposta era para um público mais velho, mas, aos poucos, conversando com professores e, principalmente, com os alunos, vi que eles tinham interesse e que para essa faixa de idade os livros já funcionam bem.
PM: Pode falar um pouco de sua trajetória pessoal e profissional?
MD: Sou de São Paulo (capital). Passei minha infância em São Mateus, depois Álvaro Alvim, agora, estou na Zona Oeste. Estudei sempre em escolas públicas e, em 1998, comecei a trabalhar com ilustração e desenho. Na época, estudava em um colégio técnico de designer gráfico – o Carlos de Campos. Depois disso, comecei a publicar em algumas revistas com outros autores e a ilustrar livros infantis, juvenis e outros. Em 2008, publiquei meu primeiro livro de quadrinhos – Noite Luz; em 2011, A Encruzilhada; em 2014, Cumbe e, em 2017, Angola Janga. Também publiquei em algumas revistas mix como Front, Quadreca, Grafite e Ragú, aqui no Brasil, além de outras estrangeiras.
PM: Que mensagem Palmares emite para o Brasil do Século XXI?
MD: Imagino que seja muito importante compreendermos o Brasil de séculos atrás porque ele ecoa no nosso Brasil contemporâneo. Ainda não superamos diversas mazelas do período da escravidão ou colonial. A nossa educação, em grande parte, não reconhece essa história dos povos indígenas e negros, por exemplo, e a invisibilidade com que tratamos essa população é tamanha que só tem conexão com a ignorância que temos sobre esses povos desde o período colonial. Conhecer um pouco sobre Palmares é conhecer um pouco mais sobre o Brasil e pensar nas diversas atuações desses grupos aqui, e como é possível superar nossas mazelas. E se posicionar sobre isso.
PM: Cumbe aborda a resistência negra durante o período colonial. Pode falar um pouco sobre isso? Você pesquisou para Cumbe também? Pode contar um pouco sobre esse processo?
MD: Cumbe significa luz, sol, força, fogo e chama. É um livro que fala de personagens negros no período colonial escravocrata do século XVII no Brasil. Trata esses personagens como protagonistas de suas histórias, mesmo dentro do sistema escravocrata, e é um livro que explora o universo, o imaginário dessas pessoas em diversas situações em oposição aos “senhores”, mas também pensando em outras pessoas dentro desse contexto colonial.
No caso de Cumbe, as pesquisas começaram por volta de 2004. Cumbe e Angola Janga partem de um mesmo projeto. A ideia era fazer uma grande narrativa sobre Palmares. Aos poucos, fui descobrindo que tinha narrativas interessantes para contar sobre o contexto de Palmares – o que era a escravidão; como eram esses povos que vieram para cá, africanos escravizados; esse contexto colonial todo. Fui percebendo que eles mereciam um livro à parte e aí veio Cumbe, tratando especificamente disso.
E, logo depois, Angola Janga, que é a finalização de todo esse processo. A ideia era que tudo compusesse o mesmo álbum, mas vi que estava ficando extenso demais e que seria interessante separar essas duas obras. Em contato com o público, creio que foi uma solução boa.
PM: No que está trabalhando atualmente?
MD: Estou trabalhando um tema um pouco mais contemporâneo, pesquisando, lendo, começando a rascunhar um roteiro, um processo demorado, lento. Essa nova obra vai ser provavelmente para daqui a alguns anos.
PM: Qual sua opinião sobre o ensino de cultura afro-brasileira nas escolas?
MD: Ensino de cultura, história e arte afro-brasileira na escola é relevante porque temos um processo longo que começa pela escravidão e que se estende pela exclusão sistemática das populações indígenas, negras e pobres das formas de decisão, da política, das grandes empresas, da economia, da cultura e da educação. O Brasil foi pensado a partir do século XIX em termos de educação, de formação das novas gerações, excluindo, sistematicamente, os conhecimentos sobre essas culturas. Nada mais legitimo, hoje, que estejamos num processo de tentar conhecer mais sobre essas culturas, inserir esse conhecimento dentro da experiência escolar.
Isso não é algo fácil, depende de muito debate, de oposição de ideias, mas também do interesse, do estudo, do aprofundamento na academia, para que a gente atinja também os professores, a formação deles e sua atuação em sala de aula. É extremamente importante, relevante, imprescindível que a gente consiga construir novas formas de lidar com esses conhecimentos não ocidentais. Não no sentido de sistematizá-los, mas entendendo que esse conhecimento é produzido no contato com outras culturas. As novas gerações merecem isso e creio que precisamos caminhar e avançar por aí.
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