Dona Ivone Lara foi uma compositora, cantora e instrumentista. Nasceu no início dos anos 1920, em Botafogo, no Rio de Janeiro.
Trabalhou como enfermeira e como assistente social, até se aposentar e se dedicar exclusivamente à música.
Pioneira, gravou 15 álbuns, compôs inúmeras canções e ficou conhecida como a Dama do Samba. Suas composições, como Sonho Meu e Acreditar, foram interpretadas por grandes nomes da Música Popular Brasileira.
Dona Ivone foi a primeira mulher a integrar a Ala de Compositores da Império Serrano, assinando um samba-enredo comumente listado entre os melhores de todos os tempos, Os Cinco Bailes da História do Rio (1965).
Seu talento musical fez com que conquistasse o Brasil e a se apresentasse, também, em outros países, como Angola, Estados Unidos, Japão e França.
“O que eu mais gosto de fazer é show. O que eu mais adoro. Eu me realizo quando e estou num teatro, num palco. Não preciso ganhar muito não, mas se tô cantando e vendo povo junto comigo, cantando também... Ahh, eu tô realizada”, disse a sambista, em entrevista ao programa especial da TVE Eu sou o show, de 1985.
Dona Ivone Lara morreu em 2018. Seu corpo foi velado na quadra do Império Serrano, sua escola do coração, em Madureira.
Biografia de Dona Ivone Lara
Yvonne Lara da Costa nasceu em 13 de abril de 1922. O ano é bastante confundido com 1921, como consta, inclusive, em documentos da artista.
De acordo com dados publicados em sua biografia, a mãe de Yvonne forjou o ano de nascimento para aumentar a idade da menina em um ano e, assim, fazer com que ela fosse aceita em um colégio interno, em 1932.
Emerentina Bento da Silva, sua mãe, era costureira e cantora de ranchos carnavalescos tradicionais do Rio de Janeiro, como o Flor do Abacate e o Ameno Resedá.
Seu pai, José da Silva Lara, era mecânico de bicicletas, violonista de sete cordas e desfilava no Bloco dos Africanos.
“Graças a Deus eu tenho muita intuição musical. Porque minha mãe cantava muito. O rádio lá de casa éramos nós mesmo, que inventava (sic) música, começava (sic) a cantar e pronto”, disse, durante a gravação do projeto Sambabook, que a homenageou.
Aos 3 anos, Yvonne perdeu o pai e, depois, mudou-se com a mãe para a Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Lá, estudou em um internato mantido pela Prefeitura do então Distrito Federal.
“[A história na música] começou foi num colégio interno, onde eu fui criada desde a idade de 10 anos, na escola Orsina da Fonseca. Lá, eu aprendi muito, principalmente a ser simples, a ser perseverante e me conformar com as coisas. Com tudo aquilo que eu pudesse alcançar, muito que bem. O que eu não podia alcançar, eu esperava”, relembrou a sambista, na entrevista à TVE (1985).
No Orsina da Fonseca, Yvonne teve aulas de música com Lucília Villa-Lobos, maestrina e professora de canto coral do colégio. Talentosa, a menina foi indicada para o Orfeão dos Apinacás, da Rádio Tupi, cujo regente era Heitor Villa-Lobos, marido de Lucília.
Aos 12 anos, a menina perdeu a mãe e, aos 17, quando saiu do internato, foi morar no bairro de Inhaúma com o tio Dionísio, músico importante da velha-guarda do choro, com quem aprendeu a tocar cavaquinho.
Dionísio tocava violão de sete cordas e integrava um grupo de chorões que reunia nomes como Pixinguinha e Jacob do Bandolim.
Tiê: composição homenageia pássaro de estimação
Aos 12 anos, Yvonne ganha um pássaro tiê-sangue, de seus primos Fuleiro e Hélio. E, assim, nasceu a que ficou reconhecida como uma de suas primeiras composições, Tiê (“Tiê, tiê / Oia lá oxá”), feita em parceria com os primos.
“Todos versos que eu fazia, eram para o pássaro. Ele que era minha boneca, ele que era minha distração, ele era tudo pra mim. Então, com esse passarinho eu conversava, eu acarinhava e fiz todos meus versinhos dedicados a ele”, disse à TVE (1985).
Segundo a própria Dona Ivone, “oia lá oxá” era um dialeto que a avó usava para reprimi-la, quando ela fazia algo de errado.
Dona Ivone Lara: enfermeira e assistente social
Quando foi morar com os tios, Yvonne viu um anúncio no jornal e decidiu se inscrever no concurso da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto. Foi aprovada entre os dez primeiros, o que lhe rendeu uma bolsa que permitiu ajudar com as despesas da casa.
Formou-se em Enfermagem e, depois, fez um curso para se tornar assistente social. Ela é considerada uma das primeiras assistentes sociais negras do Brasil.
Trabalhou no Serviço Nacional de Doenças Mentais ao lado da doutora Nise da Silveira, médica que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil.
“Quando me formei, fiz prova de habilitação para o Ministério da Saúde e fui trabalhar na Colônia Juliano Moreira, de doentes mentais. Depois de oito anos como enfermeira, cismei e fui fazer curso de assistente social, com o que trabalhei mais de 30 anos. Ao todo, 38 anos de serviço público... quando me aposentei, e virei artista”, recordou em depoimento a Lázaro Ramos, no programa Espelho (2018), do Canal Brasil.
A relação com o G.R.E.S. Império Serrano
As férias no trabalho eram sempre programadas em função do carnaval, para que a sambista aproveitasse os desfiles.
No final da década de 1940, Yvonne se mudou para Madureira. Naquela época, muitas de suas composições foram assinadas pelo primo, Mestre Fuleiro, por haver preconceito com uma mulher no mundo do samba.
Ela passou a frequentar a Escola de Samba Prazer da Serrinha, para onde, inclusive, começou a compor.
Aos 25 anos, casou-se com Oscar Costa – filho de Alfredo Costa, presidente da Serrinha –, com quem teve dois filhos, Alfredo e Odir.
Com o fim dessa escola, Dona Ivone passou a frequentar a Império Serrano, da qual seu primo foi um dos fundadores, em 1947.
Com músicas entoadas nas rodas de samba da região, ganhou reconhecimento e passou a integrar a ala dos compositores, até então restrita a homens.
Ela foi a primeira mulher a se destacar nacionalmente como compositora de uma escola de samba, mas não a primeira a compor. Carmelita Brasil, em 1959, já escrevia sambas na Unidos da Ponte.
Nesse período, Dona Ivone conheceu os amigos Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira, que viriam a ser seus parceiros em muitas composições.
Em 1965, ganhou destaque com Os Cinco Bailes da História do Rio, samba-enredo da Império, assinado em parceria com Bacalhau e Silas de Oliveira.
Com o tempo, deixou de compor e passou a ser a madrinha da ala dos compositores. E, por muitos anos, desfilou na ala das baianas.
“Eu gosto de tudo quanto é escola de samba. Porque, se eu pudesse – é que eu já tô mais idosa, né, se não... –, eu desfilava em todas elas. Porque é um prazer mesmo que eu sinto. Não é só pela Serrinha não”, disse em entrevista para documentário produzido pela Andante Filmes, em 2018.
Trecho de um episódio da série Cantos do Rio, produzida pela MultiRio, em que Joyce Moreno entrevista Dona Ivone Lara
Além do carnaval
Em 1970, adota o nome artístico de Dona Ivone Lara. O tratamento foi criado por Osvaldo Sargentelli e pelo produtor Adelzon Alves, ainda que, inicialmente, a cantora relutasse em ser chamada assim, por se achar nova demais.
No início dos anos 1970, Dona Ivone torna-se famosa no mundo do samba, e não apenas no universo do carnaval.
Apresentou-se em programas como o do Chacrinha, na TV Globo. Também, em rodas de samba do Teatro Opinião, em Copacabana, frequentado por intelectuais e por artistas como Nara Leão.
Em 1974, participou com Roberto Ribeiro de espetáculo do Projeto Pixinguinha, cantando e dançando passos de jongo, herdado das tradições africanas e dos pontos de umbanda.
Na década de 1970, Dona Ivone Lara já era aclamada pela crítica como uma das melhores compositoras de samba do Brasil, com destaque para as melodias criadas por ela.
A dedicação exclusiva à música só veio a partir de 1977, quando se aposentou da carreira no serviço público.
Dona Ivone: principais músicas e parcerias
Délcio Carvalho foi o mais constante parceiro de Dona Ivone Lara. Com ele, ela compôs os sucessos Acreditar (1976), Sonho meu (1978) e Nasci para sonhar e cantar (1982), entre outros.
Também fizeram juntos uma homenagem a Clementina de Jesus, Rainha Quelé.
As canções de Dona Ivone Lara já foram gravadas por diversos intérpretes, como Beth Carvalho, Maria Bethânia, Paulinho da Viola e Alcione.
Alguém Me Avisou e Mas quem disse que eu te esqueço, ambas em parceria com Hermínio Belo de Carvalho; além de Tendência e Enredo do meu samba, essas com Jorge Aragão, estão entre outras músicas de grande destaque.
“Nunca tive preferência por música nenhuma. Todas elas têm uma história. Tudo que tá aí, se passou comigo, é verídico”, afirmou a artista, nos bastidores da gravação do projeto Sambabook.
Dona Ivone, Mãe de Angola
Muitas obras de Dona Ivone explicitam a herança africana do samba de roda, do jongo e do partido-alto, como em Axé de Langa (“Vovô veio de Angola/ Com seu mano Tio José/ Trouxe cravos, trouxe rosas/ Pra salvar filhos de fé”).
Durante turnê pela África, na década de 1980, um episódio marcou a trajetória da artista e lhe rendeu um apelido.
“Eu jamais podia pensar que, quando chegasse a Angola, alguém fosse me reconhecer. [...] E a coisa mais engraçada foi que, na hora em que eu cheguei, começaram a me dar adeus e falar que era a Mãe de Angola, ‘mamãe, mamãe’. E eu dizia ‘que é, meus filhos’, entrando naquela intimidade com eles. Quando desci do avião, eu tinha a impressão de que eu estava em casa, de que eu já conhecia aquele lugar ali. E tive uma emoção muito grande quando fui a uma ilha com o nome Mussulo. [...] Senti um arrepio dos pés à cabeça. Eu só tinha vontade de chorar”, relembra na entrevista ao programa especial da TVE.
“Dona Ivone Lara, uma joia rara”
Dona Ivone Lara também se apresentou na Europa e em países como Estados Unidos e Japão.
Ao longo de sua carreira, ganhou muitos prêmios e homenagens.
No carnaval de 2012, foi tema do enredo da Império Serrano – Dona Ivone Lara: O enredo do meu samba.
Em 2016, a honraria veio do Palácio do Planalto, em Brasília (DF), na cerimônia da Ordem do Mérito Cultural, principal condecoração anual do governo brasileiro à área da cultura.
Dona Ivone Lara morreu no dia 16 de abril de 2018. Seu corpo foi velado na quadra da escola de samba Império Serrano, em Madureira, e enterrado no Cemitério de Inhaúma.
Ao longo de sua carreira, participou como atriz de algumas produções, como o filme A Força de Xangô (1978), de Iberê Cavalcanti.
Em 2018, o musical Dona Ivone Lara – O musical – Um sorriso negro, idealizado por Jô Santana, homenageou a vida e a carreira da sambista.
Pequenos Notáveis: produção da MultiRio homenageia Dona Ivone Lara
Para saber ainda mais sobre as canções que marcaram a trajetória da Dama do Samba, conheça a série Pequenos Notáveis, produzida pela MultiRio.
A série divulga para as novas gerações a herança da música popular brasileira a partir de seus maiores ícones, destacando nomes como Noel Rosa, Chiquinha Gonzaga e Caetano Veloso.
O formato mescla dramaturgia, animações e interpretações musicais.
Além da produção audiovisual, livros disponíveis em formato pdf compõem o projeto.
Dona Ivone Lara é uma das homenageadas da primeira edição (Pequenos Notáveis – Parte 1). Confira!
Fontes:
Agência Brasil – Referência feminina no samba, Dona Ivone Lara recebe Ordem do Mérito Cultural
https://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2016-11/simbolo-de-resistencia-dona-ivona-lara-recebe-hoje-ordem-do-merito-cultural
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
Enciclopédia Itaú Cultural
https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/dona-ivone-lara/
OLIVEIRA, Flávia. Dona Ivone Lara: Nós somos porque você foi. O Globo, Rio de Janeiro,
p. Cultura, 17 abr. 2018.