Pobre, negra e marginalizada, Carolina Maria de Jesus talvez seja a mais inusitada e improvável escritora brasileira. Seu primeiro livro, Quarto de despejo, publicado em 1960, foi um sucesso estrondoso, tendo vendido 10 mil exemplares em apenas uma semana, e sido traduzido para treze idiomas e distribuído em mais de quarenta países. A publicação e a tiragem recorde, cerca de 100 mil em três edições sucessivas, revelam o interesse do público e da mídia da época pelo ineditismo da narrativa da favelada catadora de papéis e de outros lixos recicláveis.
Nascida em 14 de março de 1914 no município de Sacramento (MG), nas proximidades de Araxá, Carolina tomou gosto pela leitura e pela escrita ainda na infância, desde que aprendeu a ler e escrever no Colégio Allan Kardec, em 1923 e 1924, os dois únicos anos em que frequentou uma instituição de ensino. Viveu em sua cidade natal até 1930, quando, desgostosa, se mudou para Franca (SP) com a mãe, que havia sido injustamente acusada de um roubo (que depois decobriram nunca ter existido).
Segundo o Portal Literafro, da Faculdade de Letras da UFMG, Carolina trabalhou em Franca como empregada doméstica até a morte da mãe, em 1937, data em que se mudou para a capital paulista, que assistia ao surgimento de suas primeiras favelas. Ela morou em uma delas: Canindé.
Em São Paulo também trabalhou como doméstica, mas a família para a qual prestava serviços a mandou embora quando engravidou. Começou, então, a catar papéis e metais para sobreviver. Guardava para si os melhores cadernos que encontrava no lixo, pois havia descoberto que, por meio da escrita, podia registrar sua luta diária pela sobrevivência e estravazar suas duras críticas à realidade social. No dia do 70º aniversário da Lei Áurea, por exemplo, ela conclui acerca de seu drama para alimentar os três filhos:
“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão atual – a fome!”.
Carolina também escrevia para viver momentos de fuga da vida miserável que levava, dando a ela um caráter documental:
“Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes brilhantes [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela”.
Quarto de despejo
Carolina de Jesus não suportava a vida na favela. Sonhando com uma sorte melhor, apresentava-se como escritora para seus vizinhos de Canindé, muito antes de seu primeiro livro, Quarto de despejo, ser publicado.
Segundo artigo de Elisângela Lopes, professora de Literatura Portuguesa do Instituto Federal de Educação do Sul de Minas, Carolina escrevia o que presenciava pelas ruas da favela: “as brigas, os assassinatos, a prostituição infantil, a miséria, a fome, o descaso social”. E quando era insultada pelos moradores, dizia que ia relatar tudo em seu livro. “Sua escrita funcionava como uma tentativa de instaurar a ordem, mesmo que mínima, naquela terra de ninguém”, analisa a professora.
O jornalista Tom Farias, um dos biógrafos de Carolina, diz que, no Canindé, ela era conhecida como “Língua de Fogo”, por falar tudo o que queria e pensava. Mas não era só contra os moradores que suas farpas eram lançadas. Também criticava os políticos por não solucionarem o problema da fome, que (segundo ela) “tem matriz na favela e sucursais nos lares dos operários”. Ainda conforme Tom Farias, sua irreverência lhe rendeu quatro prisões por acusações banais, como desacato à autoridade e ler poesia no meio da rua.
O sonho de ver seus 35 cadernos publicados começou a ganhar contornos reais quando, em 1958, conheceu o jovem jornalista Audálio Dantas em uma praça próxima de Canindé. Carolina soltava o verbo para cima de alguns adultos que estavam destruindo o playground destinado às crianças. Ameaçou denunciá-los e colocá-los em seu livro.
Ao presenciar a cena, Audálio Dantas puxou conversa. Não demorou muito para ter acesso aos inúmeros cadernos onde Carolina narrava o cotidiano de Canindé e sua luta contra a fome. O jornalista logo se interessou pela personagem e pelos relatos por ela escrito. Comprometeu-se em reuni-los e divulgá-los. E foi o que ele fez.
Em 1960, o primeiro livro de Carolina de Jesus, prefaciado por Audálio Dantas, foi publicado. Com o estrondoso sucesso e dinheiro no bolso, sua primeira decisão foi sair de Canindé. Comprou uma casa no bairro paulistano de Santana e, segundo artigo do linguista Carlos Vogt, publicado no livro Os pobres na literatura brasileira (organizado por Roberto Schwarz), ela foi apedrejada pelos vizinhos da favela no dia em que se mudou.
“O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é, sem dúvida, o livro. Escrevê-lo foi a forma que encontrou para tentar romper o fechamento do mundo que vivia”, relata o linguista.
Glória e esquecimento
Segundo Tom Faria, biógrafo de Carolina de Jesus, Quarto de despejo virou best-seller imediato, no Brasil e no mundo, tendo sido lido até pelo então presidente dos Estados Unidos John Kennedy. “Passou de ‘negra favelada’ a ‘Cinderela negra’, transmutando-se de controvertida e enigmática a uma das mulheres mais populares de seu tempo”, diz ele em artigo publicado no Portal Literafro.
Com o sucesso, Carolina passou a ter acesso aos políticos e aos famosos. Virou “a atração mais requisitada em passeatas reivindicatórias”, constata Tom Faria em suas pesquisas. Na sucessão ao governo paulista, a imprensa dizia, inclusive, que vários candidatos pensavam em tê-la como vice, por conhecer bem “os aspectos negativos da vida em São Paulo”.
Também ficou muito conhecido o embate que Carolina teve com Carlos Lacerda. Em uma de suas idas a São Paulo, o político foi por ela xingado de “mata-mendigos”, “corvo” e “monstro”. A escritora, diz Tom Faria, “deu trabalho a muita gente, mas foi precisa para marcar sua presença na cena política e cultural do país. Defendia educação de qualidade, moradia, emprego e reforma agrária”.
O retumbante sucesso de Carolina de Jesus não se estendeu por muito tempo. Havia quem não gostasse dela desde a publicação de Quarto de despejo, atribuindo a obra a Audálio Dantas e não a ela. Em 1961, publicou Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada e, em 1963, Pedaços da fome e Provérbios. Os dois livros passaram longe do êxito de vendas do primeiro e, aos poucos, a ‘Cinderela negra’ foi caindo no esquecimento.
Fato determinante para isso foi o Golpe de 1964 e o apoio das mídias ao governo dos militares. Carolina de Jesus era próxima de João Goulart, que havia assumido a presidência do país após a renúncia de Jânio Quadros. Jango, como era conhecido, incomodava os conservadores do Brasil e dos Estados Unidos. A situação política tornou-se instável e, no fim de março de 1964, os militares tomaram o poder.
Depois disso, a escritora vendeu sua casa em Santana e comprou um sítio no distrito paulistano de Parelheiros, onde se isolou. “Se a vida já estava ruim para Carolina, com as baixas vendas dos seus livros, a situação [após o Golpe de 1964] só se agravou, até o desfecho de sua morte, aos 62 anos, no dia 13 de fevereiro de 1977”, conta o biógrafo Tom Faria.
É praticamente unanimidade a opinião de que Carolina foi gerada e destruída pelas mídias em curto espaço de tempo. Mas desde o início do século XXI, começaram a ser questionados os motivos que levaram ela e outros escritores negros e/ou periféricos a serem silenciados.
Obras póstumas
Carolina Maria de Jesus deixou várias obras escritas, que foram publicadas apenas após sua morte:
Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. (Memórias).
Meu estranho diário. Organização de José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine. São Paulo: Xamã, 1996. (Memórias).
Antologia pessoal. Organização de José Carlos Sebe Bom Meihy. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. (Poesia).
Onde estás felicidade? Organização de Dinha e Raffaella Fernandez. São Paulo: Me Parió Revolução, 2014. (Conto, memória e estudos críticos).
Meu sonho é escrever... contos inéditos e outros escritos. Organização de Rafaella Fernandez. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2018.