A África é um continente. Já a Pequena África, num certo sentido, foi uma espécie de mundo. Sua área geográfica começava no Porto do Rio de Janeiro e abrangia os atuais bairros da Saúde, Estácio, Santo Cristo, Gamboa e Cidade Nova, até a Praça Onze de Junho, que foi totalmente remodelada nos anos 1940 para a abertura da Avenida Presidente Vargas. O marco remanescente daquele período é a Pedra do Sal, no Morro da Conceição. Consagrada a oferendas pelos templos afro-brasileiros das redondezas, já desaparecidos, ela servia também de mirante para acompanhar a chegada dos navios à cidade.
Pequena África é um nome que se explica pela população predominante na localidade. Ao longo das décadas, segundo Roberto Moura, autor do livro Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, aos africanos trazidos pelo tráfico diretamente para o Rio se juntavam os negros baianos libertos, alguns dos quais ex-combatentes da Guerra do Paraguai, que buscavam emprego na capital e eram acolhidos por aqueles que os precederam na rota da solidariedade, durante os anos de passagem do século XIX para o XX. Além de receberem moradia e comida, os recém-chegados ainda podiam manter viva sua tradição de origem, presente principalmente na música e no culto aos orixás. A contribuição daqueles homens e mulheres para a configuração contemporânea da cidade está mais viva do que nunca. Nada mais representativo da cultura carioca do que feijoada ao ritmo de samba.
Os moradores da Pequena África se ocupavam com diversas atividades. Preparo e comércio de doces, além de corte e costura, eram predominantes entre as mulheres. Quanto aos homens, muitos buscavam o sustento como estivadores ou estoquistas dos armazéns. Nas casas de família, também eram muito requisitados. “Em 1890, dois anos depois da abolição, dos 74.785 empregados domésticos da capital, 41.320 eram negros; 21.009, brasileiros brancos; e 12.375, estrangeiros. Dos negros, 48% dos ativos trabalhavam nos serviços domésticos. A maioria estava submetida a um regime de subemprego, situação que era também permitida pela ‘proteção’ paternalista dos patrões, que mantinham sua boa consciência complementando os magros pagamentos com o fornecimento de roupas velhas e objetos usados, o que se torna uma solução de uso corrente entre as partes”, lembra Moura.
Em paralelo à luta pela sobrevivência, essa população combatia numa segunda peleja, pela preservação de suas festas religiosas e de entretenimento. O trabalhador encontrava tempo para ser também músico ou compositor, numa época em que o processo de profissionalização ainda engatinhava. O maxixe ia sendo substituído pelo choro, pelo samba e pelos ranchos de carnaval. Os clubes dançantes popularizavam a arte de Sinhô, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Donga, Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga. A abertura de contato com as elites se dava, essencialmente, por meio da música, mas não exclusivamente por ela.
Tia Ciata, a mãe que embalou a Pequena África
Tia Ciata, mãe de santo e cozinheira, morava na Praça Onze e exerceu uma função catalisadora de atração dos bambas. Sua casa se dividia em três camadas. Na mais profunda, que era o terreiro, aconteciam as batucadas de capoeira e candomblé. Na intermediária, havia o samba de partido-alto, que ficava nos fundos da casa. Na parte externa, de frente para a rua, eram feitos os bailes na sala de visitas. Dos três, apenas os bailes não eram proibidos pela polícia, embora necessitassem de uma licença da chefatura para se realizar. Mas Ciata contou com uma proteção a mais, em comparação com as outras tias que também gerenciavam pensões.
Batizada Hilária Batista de Almeida, a baiana desembarcou no Rio de Janeiro em 1876. Ciata tinha 22 anos e trazia nos braços a filha Isabel. Veio acompanhada de Norberto, o pai da menina. Na cidade, porém, se casou com João Batista da Silva, um negro culto, que chegou a cursar dois anos na Escola de Medicina da Bahia, sem conseguir se formar. Graças à esposa e ao presidente Wenceslau Brás, João conseguiu um cargo importante no gabinete do chefe de polícia, após ter trabalhado como linotipista no Jornal do Commercio e como funcionário público na Alfândega.
Segundo o neto do casal, Bucy Moreira, em depoimento ao pesquisador Roberto Moura, um negro chamado Bispo era motorista do chefe de polícia e tinha contato permanente com o presidente da República. Ao saber que nenhum médico conseguira curar uma ferida na perna de Wenceslau Brás, lembrou-se de Ciata de Oxum, que, num prazo de três dias, deu jeito no problema, com um tratamento à base de ervas.
Quando o presidente perguntou como poderia retribuir, Ciata pediu, apenas, uma colocação melhor para o marido, já que a família era numerosa – juntos, tiveram 15 filhos. “Quanto às festas, que se tornam tradicionais na casa de Ciata, a respeitabilidade do marido, funcionário público depois ligado à própria polícia como burocrata, garante o espaço que, livre das batidas, se configura como local privilegiado para as reuniões”, afirma Moura. Foi na Pequena África que Ismael Silva fundou a primeira escola de samba do Rio de Janeiro. Batizada de Deixa Falar, ela fez parte do carnaval carioca de 1929 a 1931.
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