Proveniente do inglês, o nome fanfiction significa, ao pé da letra, “ficção de fã” e aparece na forma de “fanfic” ou, até mesmo, “fic”. Adriana Campos Virtuoso, especialista em Língua Portuguesa e mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF), define fanfictions como narrativas elaboradas por fãs que se inspiram em determinada obra com a intenção inicial de se apropriar de um universo já criado. “Nessas construções textuais, o autor faz uso de elementos, personagens e situações de um universo já conhecido e os utiliza para desenvolver suas próprias ideias”, explica.
Durante o processo de leitura, o leitor não se relaciona com o texto de forma isolada. Pelo contrário, faz suas próprias intertextualidades, a partir de vivências individuais. Essa ideia surgiu na década de 1960, com a teoria da literatura formulada por Hans Robert Jauss, chamada de Estética da Recepção, que coloca o leitor como um componente fundamental para a produção de sentido. E é da apropriação do texto por parte do leitor que surge a ideia de fanfiction.
Ainda que hoje essas narrativas sejam veiculadas, principalmente, no ambiente digital, em sites dedicados ao gênero, o que se entende por fanfiction antecede a tecnologia. Segundo Adriana, que também é professora de Língua Portuguesa na Secretaria de Educação do Distrito Federal, há diversos registros ao longo da história. “Um dos mais antigos é do início do século XVII, quando um fã teria dado continuidade à história de Miguel de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, conforme relata Anne Jamison, no livro Fic: Por que a fanfiction está dominando o mundo (2013). Da mesma maneira, é possível, ainda hoje, produzir fanfictions utilizando um texto-base, papel, caneta e uma boa dose de criatividade e técnica. A internet é uma ferramenta incrível, mas sabemos que não é acessível a todos de maneira igualitária”.
Como trabalhar com fanfictions no Ensino Fundamental
As professoras Priscila Bezerra de Menezes, de Português, e Simone da Costa Lima, de Informática Educativa, ambas do Colégio Pedro II (campus Realengo II), trabalharam o gênero fanfiction com alunos do 8º ano, a partir do livro Histórias de amor, da coleção Para gostar de ler, que reúne contos de diferentes autores.
De acordo com as professoras, o trabalho teve início nas aulas de Português e foi feito em grupos. Cada grupo recebeu a orientação de apresentar um dos contos para a turma e, em um segundo momento, de escrever uma fanfiction que envolvesse um ou mais personagens de qualquer história da coletânea, mantendo o tema central do livro.
“Os alunos poderiam dar continuidade a um dos contos ou criar outra história; misturar personagens de contos diferentes e/ou inserir novos, criados por eles. Os personagens do conto escolhido, entretanto, deveriam manter suas características originais. Ao final, pedi que escolhessem uma música para ser tema do protagonista da história”, detalha Priscila.
Depois de os textos terem sido corrigidos pela professora de Português e reescritos pelos alunos, Simone Lima criou um blog para publicá-los. “Dessa forma, as produções textuais cumpririam seu propósito comunicativo, ao circular socialmente em ambiente similar às plataformas de publicação das fanfictions”, completa a docente.
Ainda sobre o uso de fanfictions como ferramenta pedagógica, Adriana Virtuoso comenta que abordou, inclusive, o processo de formação de palavras e questões de variação linguística, a partir de textos da escritora britânica J.K. Rowling, utilizando-se dos universos de Harry Potter e de Animais Fantásticos. “Nesses casos, usei os trailers dos filmes e um pequeno texto da própria autora, disponibilizado na internet, como motivadores, pois a maioria dos alunos já conhecia as obras. A partir daí, comparei o processo criativo lexical na literatura estrangeira moderna e em textos de Guimarães Rosa, explicando e aprofundando o tema. É interessante que o aluno compreenda o conteúdo estudado como algo aplicável tanto nos clássicos literários e na literatura contemporânea, quanto na língua em uso”, aponta.
No trabalho com fanfictions, segundo a docente, podem ser usados desde best-sellers contemporâneos até clássicos da literatura brasileira. “É possível, por exemplo, propor uma resposta a Dom Casmurro: como seria um texto escrito por Capitu ou por seu filho, com relação ao comportamento de Bentinho? Os textos produzidos pelos alunos neste exercício estimulariam a prática da leitura, da escrita e permitiriam uma abordagem crítica do viés social e familiar na escola”, completa a professora.
Ela ressalta, ainda, a importância de considerar o interesse dos estudantes ao escolher os textos literários a serem trabalhados. “Ao ingressar em uma turma, procuro saber do que meus alunos gostam: o que leem; quais suas músicas, filmes e séries preferidas. Nesse diálogo inicial, construímos os nossos primeiros laços. É importante que os alunos percebam que seus interesses são respeitados e incluídos no processo de ensino-aprendizagem. Se eles gostam de filmes de terror e suspense, por exemplo, procuro textos literários que possam ser atrativos em aulas temáticas. Isso os motiva e torna as aulas mais interessantes”.
Para desenvolver a atuação crítica dos estudantes, Adriana sugere que eles adotem codinomes para assinar as produções e analisem os textos uns dos outros, simulando o que acontece na internet, em plataformas especializadas, como Nyah! Fanfiction, Fanfiction.net, Wattpad, entre outras. “A preocupação com seu próprio texto, com a estrutura e com a escrita aumenta quando o aluno percebe que outras pessoas, além do professor, lerão; o anonimato do uso de codinomes pode conceder um conforto maior na exposição do texto e um resguardo ao autor, que não precisa ser revelado à turma, somente ao professor. Há um cuidado maior e um desejo de fazer algo realmente bom.”
Múltiplas possibilidades de uso
Priscila Menezes, do Colégio Pedro II, acredita que fanfictions possam ser usadas com alunos a partir do oitavo ano, por já possuírem certo repertório de leitura e até algum conhecimento sobre o tema. Para Simone, o trabalho pode ser feito, de forma simplificada, desde o primeiro segmento. “A alteração do desfecho de uma história, a construção de uma história com os personagens de outra, o uso de cenários e/ou tempos históricos diferentes e a reescrita a partir da perspectiva de outro personagem são algumas possibilidades. Podem ser usados diferentes gêneros literários, como contos de fada, crônicas, fábulas. O importante é estimular os alunos a tornarem-se ‘fãs de literatura’ e a sentirem-se aptos a escrever, inspirados pelas leituras feitas”.
As três professoras são unânimes quanto à possibilidade de um projeto interdisciplinar. “A Literatura caminha junto a outros conteúdos disciplinares: História, Sociologia, Artes, Ciências, Filosofia etc. Há muitas obras que podem ser trabalhadas em mais de uma disciplina, a partir da análise e da escolha dos professores”, conclui Adriana.
*Mayra Bragança, estagiária, com supervisão de Fernanda Fernandes.