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Por que o Teatro Experimental do Negro tornou-se referência em educação das relações étnico-raciais
11 Outubro 2019 | Por Fernanda Fernandes
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Sortilégio, com Abdias do Nascimento e Léa Garcia (Foto: Arquivo Nacional/ Fundo Correio da Manhã)

Muito antes de a Lei N.º 10.639, de janeiro de 2003, tornar obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, uma iniciativa de 1944 se propunha a resgatar positivamente a herança da Cultura Afro-Brasileira e trabalhar pela valorização social do negro no Brasil por meio da Educação, da Cultura e da Arte: o Teatro Experimental do Negro (TEN).

Idealizado pelo economista Abdias do Nascimento, o TEN buscava promover o protagonismo negro em contraposição a representações caricaturais e estereotipadas que figuravam, até então, nos palcos brasileiros. Apropriando-se do teatro como veículo de educação popular, o TEN ofereceu cursos de alfabetização, de iniciação à cultura geral e de noções de teatro e interpretação, realizados em salas de aula cedidas pela União Nacional dos Estudantes (UNE).

Seus primeiros participantes, segundo Abdias, “foram recrutados entre operários, empregados domésticos, favelados sem profissão definida e modestos funcionários públicos.”.

“Quando fundamos o Teatro Experimental do Negro, ficou desde logo estabelecido que o espetáculo, a pura representação, seria coisa secundária. O principal, para nós, era a educação e esclarecimento do povo”, disse o idealizador, em entrevista ao jornal Diário de Notícias, em 1946.

Ironides Rodrigues foi o professor do curso de alfabetização de adultos da organização, a pedido de Abdias. “Além de rudimentos de Português, História, Aritmética e Educação Moral e Cívica, ensinei também noções de História e Evolução do Teatro Universal, tudo entremeado com lições sobre o folclore afro-brasileiro e as façanhas e lendas dos maiores vultos de nossa raça. Uma vez por semana um valor de nossas letras ali ia fazer conferência educativa e acessível àqueles alunos operários que, até altas horas da noite, vencendo um indisfarçável cansaço físico, ali iam aprendendo tudo o que uma pessoa num curso de cultura teórica e, ao mesmo, prática. Com o aprendizado das matérias mais prementes para um alfabetizado, havia leitura, os ensaios e os debates de peças (...) de forte conteúdo racial”, diz em relato reproduzido por Jeruse Romão em Educação, instrução e alfabetização de adultos negros no Teatro Experimental do Negro.

Aulas de alfabetização eram ministradas pelo professor Ironides Rodrigues (Foto: Acervo Ipeafro)

O TEN realizou, ainda, palestras, congressos, concursos de artes plásticas e concursos de beleza e criou o jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro (1948-1950). De lá, também surgiram duas organizações de mulheres negras: a Associação de Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional das Mulheres Negras.

Teatro Experimental do Negro: da concepção à estreia

A ideia de criação do TEN surgiu quando Abdias do Nascimento assistiu à peça O Imperador Jones, do dramaturgo norte-americano Eugene O´Neil, no Teatro Municipal de Lima, no Peru, em 1941. No espetáculo, o protagonista era interpretado por um ator branco, com a pele pintada de preto – prática conhecida, hoje, como “blackface” –, o que intrigou Abdias.

“Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um intérprete dessa raça? Entretanto, lembrava que, em meu país, onde mais de vinte milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta milhões de habitantes, na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da minha cor. Não seria, então, o Brasil, uma verdadeira democracia racial?”, questionou Abdias no artigo Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões, onde também ressalta que “nada sabia de teatro” naquela época.

Naquela mesma noite, o economista decidiu que, ao voltar o Brasil, criaria um “organismo teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói de histórias que representasse”. Assim, em 13 de outubro de 1944, era o fundado o Teatro Experimental do Negro, que enfrentaria obstáculos e críticas, entre as quais a acusação de “racismo às avessas”.

Em uma declaração no livro Damas negras: Sucesso. Lutas. Discriminação, de Sandra Almada, a atriz Lea Garcia, que integrou o TEN, comentou a questão. “O Rio de Janeiro está cheio de peças em que só atuam brancos e eles não têm sentimento de culpa. Então, por que, ao montarmos uma peça só com negros, estamos fazendo racismo às avessas?”.

Abdias do Nascimento no papel de Otelo, na peça de William Shakespeare (Foto: Arquivo Nacional/ Fundo Correio da Manhã)

Segundo Abdias, a menção pública do vocábulo “negro”, na época, provocava sussurros de indignação. “Era previsível, aliás, esse destino polêmico do TEN, numa sociedade que há séculos tentava esconder o sol da verdadeira prática do racismo e da discriminação racial com a peneira furada do mito da ‘democracia racial’”, explica no artigo já citado.

Ao lado de Abdias, estiveram Aguinaldo de Oliveira Camargo, Wilson Tibério, Teodorico dos Santos e José Herbel; depois, juntaram-se Arinda Serafim, Ruth de Souza, Marina Gonçalves e muitos outros.

Após seis meses de debates, aulas e exercícios práticos de atuação em cena, os primeiros artistas do TEN estavam prontos para a estreia, que se deu no dia 8 de maio de 1945, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com a apresentação de O Imperador Jones. A permissão para produção foi concedida, sem custo algum, pelo autor, O´Neil, que desejou sucesso ao grupo.

Em 1947, o primeiro texto brasileiro escrito especialmente para o TEN foi encenado: O Filho pródigo, de Lúcio Cardoso, inspirado em uma parábola bíblica e considerado a maior peça teatral do ano.  Entre outros títulos montados pelo TEN estiveram Aruanda, Filhos de Santo, Rapsódia Negra, Orfeu da Conceição e Sortilégio.

O grupo revelou artistas como Ruth de Souza e a própria Lea Garcia, símbolos do teatro e da televisão brasileira.

As ações do Teatro Experimental do Negro: diálogos com práticas desenvolvidas na Rede Pública Municipal de Ensino

Para atuar a nível político, o TEN organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, composto por um grupo de negros ativistas e líderes estudantis, mas que acabou sendo desarticulado, “vítima da patrulha ideológica de supostos aliados” – nas palavras de Abdias.

Depois disso, organizou a Convenção Nacional do Negro em São Paulo (1945) e no Rio de Janeiro (1946), cujas decisões levaram à elaboração de um projeto de lei propondo a criminalização do preconceito racial no país, a primeira proposta de legislação antidiscriminatória no Brasil, encaminhado para a Constituinte de 1946. O projeto, entretanto, não foi aprovado. Mais tarde, em 1951, seria promulgada a Lei N.º 1.390, conhecida pelo nome de seu criador, Afonso Arinos, que tornava contravenção penal a discriminação racial, mas que não obteve efeito na prática porque não havia condenação.

Outra iniciativa do TEN foi a criação do jornal Quilombo, que circulou entre dezembro de 1948 e julho de 1950. O veículo era educativo e formativo e denunciava práticas de racismo e discriminação contra o negro.

Esse tipo de debate está presente na E.M. Clementino Fraga, em Bangu (8ª CRE), por meio do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros Ayó – Neab Ayó, focado na educação das relações étnico-raciais e coordenado pelos professores Gustavo Pinto e Monique de Almeida dos Santos.

Sobre intolerância religiosa, um assunto também abordado no jornal Quilombo, Carolina Barcellos Ferreira, mestre em História e professora da E.M. Cecília Meireles, na Vila Kosmos (5ª CRE), produziu um material pedagógico para ser usado em sala de aula, o livreto Religiosidades nos museus.

Ainda sobre as realizações do TEN, pode-se destacar o I Congresso do Negro Brasileiro, no Rio, em 1950, e a exposição, no Museu da Imagem e do Som, em 1968, da primeira coleção de seu Museu de Arte Negra, cujo projeto foi interrompido devido à perseguição política do regime militar.

Pinturas realizadas por alunos da E.M. Nações Unidas durante projeto Afro Olhar, desenvolvido pela professora Mariana Maia (Fotos: Alberto Jacob Filho/ Edição: Emilia Teles)

Além disso, foram promovidos concursos cujos objetivos também dialogam com práticas desenvolvidas na Rede Municipal. O concurso de artes plásticas com o tema Cristo Negro, vencido por Djanira, em 1955, vê na pintura uma forma de valorizar a herança afro-brasileira, assim como o trabalho desenvolvido pela professora Mariana Maia, na E.M. Nações Unidas, em Bangu (8ª CRE), propondo aos alunos representar personalidades presentes no livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis, de Jarid Arraes.

Outros concursos do TEN foram Rainha das mulatas e Boneca de pixe, com o objetivo de realçar a beleza afro-brasileira, em oposição aos consagrados padrões brancos de beleza. A proposta remete ao projeto Solta esse Black, conduzido por Pâmela Souza, na E.M. Levy Miranda, na Pavuna (6ª CRE).

No âmbito do TEN surgiram a Associação de Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional das Mulheres Negras, destacando-se nessa mobilização Arinda Serafim, empregada doméstica, e Maria Nascimento, assistente social.

Na E.M. José Enrique Rodó, em Vila Valqueire (7ª CRE), a importância da mulher negra na História foi destacada em um projeto desenvolvido pela professora Luciana Guimarães Nascimento, a partir de um enredo da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, Senhoras do Ventre do Mundo.

Na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-Rio), o Programa Rio-Escola Sem Preconceito tem ações voltadas para lidar com todas as formas de preconceito e discriminação, de maneira a contribuir para a construção e a consolidação de uma sociedade mais fraterna e igualitária. Um de seus eixos norteadores são as Relações Étnico-Raciais, tema de seminários organizados pelo Programa, que reúnem práticas exitosas na Rede.

“E aqui chegamos ao ponto fundamental da valorização da gente de cor: a educação. Pela educação é que havemos de conquistar igualdade moral, intelectual, cultural, artística, econômica e política. Quando todo negro souber ler e escrever, teremos dado o passo mais decisivo para a nossa recuperação. Enfim, educar e alfabetizar a população dos morros é uma forma de libertar e emancipar a gente negra. Porque a ignorância, o analfabetismo, é a forma mais terrível de escravidão”, escreveu Maria Nascimento na coluna Fala A Mulher da edição número 5 do jornal Quilombo.

A trajetória de Abdias Nascimento, idealizador do TEN

Abdias do Nascimento nasceu na cidade de Franca, em São Paulo, em 14 de março de 1914, e faleceu no Rio de Janeiro, em 24 de maio de 2011, aos 97 anos. Escritor, artista plástico, teatrólogo, político e poeta, foi uma das personalidades mais importantes para o movimento negro no país.

Abdias do Nascimento (Foto: Ricardo Stuckert/ Agência Brasil)

Depois de exilar-se nos Estados Unidos durante o regime militar, retornou ao Brasil e exerceu mandato de deputado federal (1983-1987) e de senador (1997- 1999), além de ter criado e ocupado a Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras, no início dos anos 1990, no Governo do Rio de Janeiro.

Foi o primeiro parlamentar negro a dedicar sua atuação política à defesa dos direitos da população negra e, como deputado, elaborou a primeira proposta de legislação instituindo políticas públicas afirmativas de igualdade racial.

Em 1981, criou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), que, hoje, guarda seu acervo documental e museológico e se dedica à dar continuidade ao trabalho de Abdias.  O instituto, dirigido pela escritora e educadora Eliza Larkin Nascimento, viúva do intelectual, realiza cursos, exposições e fóruns para educadores, além de outras ações focalizando as relações raciais e a história e cultura de matriz africana.

Em sua trajetória, Abdias recebeu muitas homenagens e condecorações – como o Prêmio de Direitos Humanos da ONU, em 2003 –, além de ter concorrido ao Nobel da Paz de 2010.

 

 

Fontes:

Site do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).
Site da Fundação Cultural Palmares.
Site da Câmara dos deputados.
História da Educação do Negro e outras histórias/Organização: Jeruse Romão. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. 2005.
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados. São Paulo, USP, vol.18, n.50, jan.-br. 2004. pp. 209-224.
Teatro Experimental do Negro (TEN). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019.
NUNES, Rafael dos Santos. A formação e educação do negro pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) – um estudo a partir das páginas do jornal Quilombo.  PUC-SP, 2012.
MARCELINO, Jonathan. A atuação do movimento social negro na implementação da Lei Federal N.º 10.639/03: desafios e possibilidades. X Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, Uberlândia, Minas Gerais, 2018.

 
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