Os limites de tempo de tela hoje não são os mesmos de 2019, disse Daniel Spritzer, médico especializado em psiquiatria infantil do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, instituição vinculada à UFRGS. Para o psiquiatra, o conceito deve ser relativizado em tempos de pandemia e isolamento social. Em suas palavras, “o que precisa ser visto é o uso problemático das telas. O modelo mais interessante é o do game disorder (transtorno relacionado a jogos eletrônicos, no qual leva-se em consideração a perda de controle, a prioridade na vida (se a pessoa está deixando de lado tarefas obrigatórias como sono, alimentação e educação) e o prejuízo para o sujeito, levando-se em consideração o período mínimo de 12 meses". No Brasil, 89% das crianças e dos adolescentes estão conectados, como mostra a pesquisa Cetic.br.
O psiquiatra esclareceu que "essa condição não é relacionada a um fator apenas. Para se estabelecer é preciso uma série de fatores envolvidos, como ambiente propício, elementos viciantes e vulnerabilidade individual. Para Daniel, o uso intenso não é necessariamente problemático, podendo diminuir a solidão; sendo menos prejudicial que o uso de substâncias tóxicas e comer em excesso – formas muito presentes de se lidar com o sofrimento".
Daniel salientou, no entanto, que o uso intenso de tecnologias digitais pode solidificar estilos de vida não saudáveis com isolamento e sedentarismo. "Os responsáveis devem acompanhar as atividades dos filhos na internet. Conhecer melhor e orientar com propriedade. Medidas impositivas não são tão boas quanto uma boa conversa", assegurou o médico.
O psiquiatra foi um dos palestrantes do 5° Simpósio Crianças e Adolescentes na Internet, que aconteceu em 16 de novembro no site do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto br (Nic.br), que é a organização responsável pela implementação das decisões acerca da internet no Brasil. Os demais palestrantes são profissionais da área da saúde, da educação, e da tecnologia. Eles trouxeram os últimos dados e reflexões sobre os impactos, riscos e benefícios da internet para crianças e adolescentes.
Houve três eixos principais de abordagem no simpósio: como crianças e adolescentes estão sendo afetados pelo uso das tecnologias digitais; materiais disponíveis para a promoção do uso seguro da internet por esse público; e o uso de dados como questão de soberania nacional.
Karen Scavacini, coordenadora do Instituto Vita Alerie, de prevenção e posvenção ao suicídio, falou sobre quais são os sinais de que algo não vai bem com uma pessoa: mudanças bruscas de comportamento, de humor, de sono e de alimentação. “É preciso ajudar os mais jovens a olhar com esperança para o futuro mesmo com todas as incertezas”, instruiu Karen.
A SaferNet Brasil, que há 14 anos promove os direitos humanos na internet, oferece duas cartilhas sobre prevenção ao suicídio em duas versões, uma voltada para pais e responsáveis e outra para adolescentes. Chama-se Prevenção do Suicídio na Internet e traz informações e orientações sobre o tema de forma simples e direta. Esse material procura combater um problema crescente. Segundo o Mapa da Violência do Ministério da Saúde, entre 2000 e 2012, o número de suicídios entre crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos cesceu 40%.
Renata Tomaz, pesquisadora de mídias, infância e culturas digitais na UFF, lembrou que "as interações sociais são muito importantes, especialmente para os mais novos, pois possibilitam desenvolver as competências e recursos para criar vínculos ao longo da vida. É na interação com as outras pessoas que eles se constitueam como sujeitos e desenvolvem a capacidade de que sua voz seja ouvida no ambiente onde estejam, e também consigam agir de forma relevante na sociedade".
Renata salientou que "o isolamento físico fez com que nossos relacionamentos passassem a acontecer em grande parte mediados por máquinas, nos forçou a dar autenticidade à sociabilidade por meio da máquina, uma maneira que os mais jovens já tinham. E isso nos ajuda a entender a perspectiva deles". A pesquisadora disse que precisamos estabelecer bases importantes para conversar com crianças e adolescentes. Compreendê-los melhor e orientá-los de maneira produtiva.
Para Ilana Katz, psicanalista que pesquisa a infância e é doutora em Educação pela USP, a "conexão digital não é equivalente a laços sociais e nem sempre enlaça e amplia mundos. A conexão digital deve estar a serviço da criança e do adolescente e é preciso arbitrar essa relação. Não basta estar conectado. A qualidade do conteúdo faz diferença e o tempo também. É importante se perguntar: cadê o outro nessa conexão?". Para a psicanalista, outras questões importantes são a urgência da democratização do acesso e a garantia de ambientes democráticos, porque, segundo ela, só assim teremos segurança digital no Brasil.
Subsídios para a educação digital
“Devemos educar o cidadão para o consumo de informação na internet com base em três eixos: leitura crítica, autoexpressão e participação cidadã. Além disso, é necessário aprender a refletir e dialogar sem atacar. Portanto, educação midiática é inclusão e cidadania. Precisamos promover a ideia de que devemos ser cidadãos responsáveis e não apenas usuários”, disse Patricia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta.
O Palavra Aberta disponibiliza gratuitamente o Guia da Educação Midiática, um e-book que convida educadores e demais agentes ligados à educação a refletir sobre a importância e a urgência de prepararmos crianças e jovens para uma relação rica e fortalecedora com as mídias. O guia oferece exemplos de práticas em sala de aula relacionadas com a BNCC (consumo consciente de mídia e produção ativa de conteúdo).
Priscilla Gonsalez, fundadora do Educadigital, divulgou a plataforma Pilares do Futuro, que reúne práticas educativas em cidadania digital. Professores podem enviar propostas de experiências escolares em chamadas semestrais. Esses projetos podem ainda não terem sido implementados. Há também formações remotas.
Thiago Tavares, presidente da SaferNet Brasil, contou que, durante a pandemia, as denúncias de imagens de abuso sexual aumentaram 120%, sendo essa uma tendência mundial. Há esforço para detectá-las, removê-las e responsabilizar os responsáveis. A Safernet mantém uma central de denúncias em trabalho conjunto com o Ministério Público Federal, no qual é possível fazer denúncias sobre uma série de violações, como apologia e incitação a crimes contra a vida, racismo, intolerância religiosa entre outros. Além disso, 40 países fazem parte dessa hotline de denúncia com compartilhamento de dados. Por meio desse trabalho, páginas com conteúdo tóxico são removidas. “Na pandemia, houve aumento de todo tipo de denúncia (pornografia infantil, nazismo, LGBTQfobia etc)”, disse Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da SaferNet Brasil.
Em parceria com o Unicef, a SaferNet Brasil disponibiliza o guia Meninas em Rede, com oficinas para o enfrentamento de situações de violência. Há também um Canal de ajuda, on-line e gratuito, que oferece orientação de forma pontual e informativa para esclarecer dúvidas sobre segurança na internet e prevenir riscos e violações, a exemplo de intimidação, humilhações (ciberbullying), troca e divulgação de mensagens íntimas não-autorizadas (sexting ou nudes), encontro forçado ou exposição forçada (sextorsão), uso excessivo de jogos na Internet e envolvimento com desafios perigosos.
“Internet não é terra sem lei”, afirmou Míriam Von Zuben, analista sênior do Cert.br. O Portal Internet Segura reúne inciativas de conscientização sobre segurança e uso responsável da internet no Brasil. Há diversos materiais para diferentes públicos: crianças, adolescentes, pais, responsáveis, educadores, e o público em geral. Todo material foi produzido pelo NIC.br e pode ser utilizado e distribuído livremente.
Outra iniciativa é o site Cidadão Digital, que possui um programa para alunos da rede pública de ensino, disponibilizando um guia com exercícios e atividades sobre cidadania digital e educação midiática.
A FGV-SP oferece formação para educadores em direitos humanos digitais. São 16 cursos on-line gratuitos e autoinstrucionais.
Rodrigo Nejm, diretor de Educação da SaferNet Brasil, disse que é um equívoco pensarmos que o ambiente digital é um outro mundo, um lugar separado. “Precisamos ter estratégias de mediações desses novos espaços. O digital é mais um ambiente da vida, que deve ser respeitosa, ética, mais positiva, e não tóxica
Uso de dados: questão de soberania
Elora Fernandes, doutoranda em Direito Civil na Uerj e mestre em Direito e Inovação pela UFJF, pesquisa sobre as plataformas educacionais que, abruptamente, estão sendo utilizadas no Brasil para o ensino remoto. Não há regras claras sobre seu uso no país. Segundo a pesquisadora, as redes de educação têm adotado o Microsoft 365 (Teams), Google For Education e a brasileira Mano.
"Essas empresas oferecem parcerias 'gratuitas' e têm acesso a dados sobre alunos, professores e instituições de ensino. O tratamento de dados pessoais está longe de respeitar os direitos das crianças e seu melhor interesse. No caso da brasileira Mano, a TV Bolsonaro já vem incluída", afirma Elora. Em relação às outras duas empresas estrangeiras, Elora chamou a atenção para "o fato de que estamos abrindo mão de nossa soberania tecnológica e a história mostra que quem detém o conhecimento científico-tecnológico é quem detém o poder. Estamos vivendo no capitalismo científico, onde o gerenciamento de dados é crucial na divisão internacional do trabalho".
Quem quiser saber mais, pode acessar o relatório Educação, Dados e Plataformas, no site Educação Vigiada, produzido pela Educação Aberta, Instituto Alana e Intervozes, cuja autora é Stephane Lima, doutoranda em Teoria do Estado pela USP, e no qual Elora Fernandes contribuiu com o texto Uso de Tecnologias na Educação Básica em Tempos de Pandemia: reflexões sobre a proteção de dados das crianças.
Em sua participação no simpósio, Elora sugeriu que as soluções para as questões apresentadas passam por desenvolvermos e usarmos recursos tecnológicos abertos, com desenvolvimento tecnológico local e encarando a educação pública como uma área estratégica na sociedade brasileira.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) entrou em vigor em 18 de setembro de 2020 e tem como objetivo garantir mais segurança e transparência às informações pessoais coletadas por empresas públicas e privadas. Segundo Kelli Neves, do Nic.br, as escolas terão que adotar medidas administrativas para estar em conformidade com a LGPD.
“Precisamos construir e afirmar direitos para a próxima geração e, para isso, é necessário disseminar essa pauta entre gestores e educadores”, colocou Rafael Zanatta, da Ong Data Privacy Brasil.
“O problema de manipulação de dados pessoais é mundial. A Catalunha, a Bélgica e a Noruega são exemplos de países cujas autoridades estão se ocupando disso, principalmente os Ministérios da Educação dessas regiões, no sentido de colaborar com as escolas para que compreendam o que está acontecendo. Empresas de tecnologia têm oferecido preços negativos para ter acesso à base de dados de quem as contrata. Trata-se de um drama global. O Uruguai é um exemplo de país latino americano com internet banda larga até mesmo nas zonas rurais e que está trabalhando para ter segurança de dados. No Brasil, a LGPD abre caminho para que haja corregulação do setor, envolvendo a sociedade e o Estado”, disse Rafael Zanatta, diretor executivo da Data Privacy Brasil.