Um grande número de profissionais do Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares (Niap) da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME) está convencido de que o desenvolvimento da oralidade deveria receber mais atenção das escolas de Ensino Básico e até mesmo Superior.
“A oralidade é um meio privilegiado de interação e comunicação. Ocupa posição de centralidade nas relações humanas e na constituição da subjetividade. É fundamental aos processos de ensino e aprendizagem”, diz a doutora em Psicologia Analítica Jôse Sales, professora da Universidade Estácio de Sá e psicóloga do Niap.
Ela adverte que, embora seu ensino esteja previsto nas legislações brasileiras sobre currículo, como LDB e BNCC, e seja muito valorizada e trabalhada na Educação Infantil, a oralidade vai, gradativamente, sendo deixada de lado por parte expressiva das escolas, a partir do primeiro ano do Ensino Fundamental. Isso tem consequências.
“Quando a oralidade está comprometida, temos dificuldades no processo de aprendizagem”, diz Kátia Rios, doutora em Educação, especialista em Linguística Aplicada e gerente do Niap. Ela lembra que, além de estar no centro da construção da subjetividade, a oralidade também é um pilar linguístico: “Vários estudos mostram como a língua de sinais, meio pelo qual os surdos exercem sua oralidade, é primordial para aprenderem Línguas (Português, Inglês, Chinês etc...) e demais habilidades”.
Essa relação umbilical entre oralidade e aprendizagem não é exclusiva dos surdos, apenas mostra como ela existe até mesmo entre aqueles que têm a audição e a fala comprometidas. "O desenvolvimento da competência oral é fundamental para o sucesso escolar de todos. Os profissionais de ensino precisam estar atentos a essa questão”, diz Kátia Rios.
A gerente do Niap ainda lembra que a oralidade acompanha todo o processo de humanização e socialização do sujeito. Segundo ela, possibilita as trocas coletivas e as práticas culturais, além de ser fundamental à existência individual:
“É ela que nos permite pensar em infinito e nos dá a capacidade de simbolizar, propiciando a criação de sistemas de comunicação, de linguagens e de formas de expressão do pensamento e da emoção. A oralidade tem muitas funções: imaginação, pensamento, memória, ação...”.
Hierarquias
Como dar mais atenção aos aspectos relacionados ao desenvolvimento da oralidade? A psicóloga do Niap dá exemplos de como sua importância é subdimensionada e o que pode ser feito para que isso não aconteça:
"É comum que se peça aos alunos a apresentação oral de um trabalho, mas raramente eles são ensinados a estruturar uma apresentação. É preciso mostrar como podem fazer isso”. A psicóloga considera que a escola deve observar, inclusive, os alunos considerados desenvoltos e bem articulados nas apresentações escolares, pois podem não ter facilidade de se colocarem em outros contextos.
Jôse Sales ainda lembra que é muito comum que as habilidades orais sejam tratadas como inatas: "O aluno A fala muito bem, o aluno B não. Várias vezes, isso é compreendido como um dom natural que A tem. A indagação sobre o que a escola pode fazer para ensinar B a falar melhor, raramente surge. Mas é fundamental que isso aconteça”.
Já em relação à escrita, a percepção costuma ser diferente: “Quando um professor nota que um aluno tem dificuldade na escrita, costuma passar trabalhos extras para ele. Se são muitos com o mesmo problema, a escola até cria turmas de reforço no contraturno. Ou seja, há uma cultura que dá mais importância ao letramento do que à oralidade. É importante que se entenda que todos os aspectos da língua são relevantes - escutar, falar, ler e escrever. Criar uma hierarquia entre esses processos é prejudicial”.
Tanto Kátia Rios como Jôse Sales acreditam que essa hierarquização é fruto do processo de colonização europeia, que supervalorizou sua produção escrita e destituiu de valor as atividades orais.
“Em decorrência desse processo histórico, as crianças oriundas de famílias com tradição letrada tendem a se sair melhor nas avaliações aplicadas pela escola (em sua maioria escrita) e, portanto, são consideradas mais “inteligentes” e mais “aptas” do que as crianças oriundas de famílias com tradição oral. O que se reproduz dentro das escolas não difere daquilo que se encontra do lado de fora”, avalia a psicóloga do Niap.
Para ela, a oralidade precisa ser aprimorada na sociedade brasileira como um todo. Seu desenvolvimento é importante para a construção da educação cidadã, pois envolve a escuta e o diálogo, a capacidade de expressar o que se pensa e o que se deseja. Sem isso – diz Jôse Sales – não é possível se agrupar em torno de um objetivo comum.
Na prática
Está enganado quem pensa que é pura teoria a defesa da importância da oralidade feita pelos profissionais do Niap. Vários trabalhos em que utilizam recursos da cultura oral têm surtido resultados animadores nas escolas onde trabalham, a exemplo da Poesia Falada e do Slam.
“Sou psicóloga e psicanalista. A oralidade é algo crucial na minha prática profissional. Acho que já entrei na Educação com a percepção de sua centralidade nas relações humanas e, portanto, nos processos de ensino e aprendizagem. Mas, o exercício da escuta junto aos adolescentes fez com que eu conferisse ainda mais valor à oralidade. É incrível como eles se engajam em atividades – como rádio escolar e roda de conversa — em que o ouvir e o falar são o carro chefe”, conta Jôse Sales.
Atividades que envolvem a oralidade
Além das atividades já mencionadas, Jôse Sales cita outras que podem ser desenvolvidadas na escola:
"Contação de histórias; leituras de texto e poesia; debate de assuntos polêmicos e atuais; discussões de temas escolhidos pela turma; jogral; apresentação teatral; canto; entrevistas entre alunos ou com pessoas de fora da escola; simulações de entrevista de emprego; oficinas de produção textual; feiras e exposições direcionadas ao público externo ou a outras turmas da escola; gravação de vídeos e podcasts. O importante é que o professor esteja à vontade em executá-las, que os alunos tenham algum nível de prazer e que a atividade faça sentido para eles”.
Apesar da oralidade não receber a devida importância por parte de vários segmentos sociais, mudanças significativas estão ocorrendo: “No momento atual, vivemos um paradoxo. De um lado as instituições educacionais tradicionais e o mercado formal de trabalho seguem super valorizando a escrita. De outro, profissões novas e almejadas pelas crianças e adolescentes (youtubers, por exemplo) deixam evidente a força e a importância da oralidade”, conclui a psicóloga do Niap.