Não se pode contar a história da educação formal brasileira sem considerar a pedagogia dos primeiros missionários católicos que chegaram ao Brasil, nos primórdios da colonização portuguesa. Entre eles, um tem papel de destaque e dá nome a uma escola municipal localizada na Ilha do Governador, no bairro do Jardim Guanabara (11ª CRE). Trata-se do jesuíta José de Anchieta, chamado de “Apóstolo do Brasil” por analogia com o trabalho de doutrinação e evangelização dos 12 discípulos de Cristo.
A alcunha ilustra bem a principal preocupação pedagógica do missionário. Suas ideias estão inseridas no horizonte do cristianismo renascentista e no humanismo dos jesuítas, que não enxergavam a educação apenas como ferramenta para instrução dos conteúdos formais, mas, principalmente, como instrumento de formação do homem, visto como figura em permanente construção. Como, para os jesuítas, o cristianismo era considerado a religião que traduzia os princípios humanos universais, o foco do trabalho pedagógico de seus missionários estava fundamentado na formação de fiéis a Cristo e, por conseguinte, ao Papa e à Coroa.
Trajetória e método
José de Anchieta nasceu em 1534, na ilha de Tenerife, nas Canárias, arquipélago localizado na costa ocidental da África, que a Espanha havia recém conquistado. Aos 14 anos, ingressou no Real Colégio das Artes e Humanidades, em Coimbra, instituição que, por seu humanismo, exercia um papel de vanguarda no contexto do ensino da época.
Após finalizar o curso de Filosofia no Real Colégio, em 1551, Anchieta entrou para a Companhia de Jesus, e, 24 meses depois, aos 19 anos, embarcou num dos navios da frota de Duarte da Costa, que havia acabado de ser nomeado governador geral do Brasil. Ele compunha o grupo de noviços requisitados pelo padre Manuel da Nóbrega, estabelecido na capitania de São Vicente e que estava às voltas com a difícil tarefa de catequizar os indígenas brasileiros.
Em janeiro de 1554, ajudou a fundar o Colégio São Paulo, a partir do qual um núcleo urbano se formou, dando origem à capital paulista. Mas o trabalho de catequese era o seu objetivo principal. Para isso, convivia, diariamente, com os indígenas e priorizava o ensino das crianças. “Temos uma grande escola de meninos índios, bem instruídos em escrita e bons costumes, os quais abominam os usos de seus progenitores”, ele escreveu em uma carta datada de 1555. Era no moldar das gerações mais novas que a conversão ao cristianismo encontrava terreno mais promissor, embora a descaracterização cultural dos jovens muitas vezes causasse vários conflitos com os mais velhos das tribos.
Outra estratégia utilizada pelos jesuítas era a do aldeamento dos índios sobreviventes das empreitadas de conquista do colonizador. Em uma carta de 1565, Anchieta explicava como procedia para convencer os índios a abandonarem suas terras e tribos em definitivo: “Dizia-lhes que se alegrassem com a nossa vinda e amizade; que queríamos ficar entre eles e ensinar-lhes as coisas de Deus, para que lhes dessem abundância de mantimentos, saúde...”.
Esse trabalho de convencimento, certamente, ficou mais fácil com a decisão da Mesa da Consciência e Ordem de Lisboa – composta por representantes da Coroa e do Vaticano – que restringiu, naquele mesmo ano, a escravização dos índios. Só poderiam ser considerados escravos aqueles que eram “aprisionados em guerras justas”, sendo livres todos os demais que se submetessem pacificamente à catequese.
Os aldeamentos se tornaram, assim, um espaço fundamental de civilização pelos jesuítas. Eles também cumpriam função primordial no sistema produtivo, pois enquanto o colonizador se preocupava com a exportação de açúcar e pau-brasil para a metrópole, os índios eram ensinados a cultivar os produtos de subsistência, comercializados pelos padres.
Tamoios e fundação do Rio
A decisão da Mesa da Consciência e Ordem, tomada em 1565, data da fundação do Rio de Janeiro por Estácio de Sá, certamente está relacionada com os conflitos que os portugueses enfrentavam junto aos tamoios. Três anos antes, chefes e guerreiros de várias tribos indígenas se encontraram em Iperoig (atual cidade de Ubatuba-SP), para onde os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta também se dirigiam a fim de negociar a paz com as tribos, que ameaçavam atacar os portugueses.
A lista de queixa dos índios era grande – incêndio de suas aldeias, escravização, etc. Exigiam a libertação de todos os nativos, reivindicação não aceita pelos padres. Diante do impasse, Manuel da Nóbrega se dirigiu, junto com o líder indígena Cunhambebe até a cidade de São Vicente, para negociar com o governo da capitania, enquanto Anchieta ficou em Iperoig como refém dos tamoios. Após meses de negociações, o tratado foi celebrado em 1563.
A paz, porém, durou pouco: no ano seguinte, a Confederação dos Tamoios foi reorganizada, sob o estímulo dos franceses, até que, em 1565, Estácio de Sá – na companhia dos dois padres – chegou com sua esquadra à Baía de Guanabara para fundar a cidade do Rio de Janeiro. Os conflitos, contudo, só foram minimizados com a chegada da frota de Mem de Sá, em 1567, quando, finalmente, os portugueses puseram fim ao projeto da França Antártica e venceram os tamoios na épica Batalha de Uruçimirim.
Múltiplas estratégias de catequese
Não era fácil cristianizar nativos de uma cultura tão distinta da europeia. Anchieta, contudo, não desistiu. Desenvolveu um arsenal de estratégias para abordar e se relacionar com os indígenas, a começar pelo aprendizado do tupi, língua a qual escreveu uma gramática, que passou a ser utilizada por todos os missionários.
O jesuíta também observou que os rituais indígenas eram todos acompanhados de sons e coreografias e, logo, passou a escrever poesias de devoção religiosa para dar letra às músicas, inspiradas tanto na sonoridade nativa, como na dos cancioneiros ibéricos. Também fez várias peças teatrais com o mesmo objetivo.
Anchieta é, na verdade, o primeiro missionário a utilizar a arte profana como ferramenta para cristianização. Aliás, também é considerado por muitos como o ponto de partida da arte e da literatura brasileira. No campo do teatro, por exemplo, vários pesquisadores entendem que as encenações promovidas pelo padre não podem ser vistas apenas dentro da esfera pedagógica, já que suas produções também exibiam nítidas preocupações de caráter artístico. O mesmo ocorre em relação às suas poesias. Por isso, vários estudiosos consideram que Anchieta não foi apenas um pioneiro da educação, mas também da arte brasileira.
Fontes:
. A Literatura de José de Anchieta e a Gênese da Educação Brasileira. Rosemeire França de Assis Rodrigues Pereira.
. O Teatro de José de Anchieta: Arte e Pedagogia no Brasil Colônia. Paulo Romualdo Hernandes.
. O Cancioneiro Ibérico em José de Anchieta: um Enfoque Musicológico. Rogério Budasz.
. Missões de Aldeamento como Intermediadoras da Colonização. Revista de História da UFRN.
. José de Anchieta: Biografia. Site: www.soliteratura.com.br
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