Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregou um relatório final que estima em cerca de 180 o número de mortos pela ditadura militar no período entre 1964 e 1985. De acordo com a CNV, foram contabilizados apenas os casos possíveis de ser comprovados. O sofrimento dos familiares dessas vítimas, que muitas vezes se arrastava numa busca interminável pela localização dos corpos, ganhou um contorno fora do comum, ao ser transformado em produto da moda pela mãe estilista que acabaria virando símbolo da dor de toda uma geração.
Foi a partir do casamento com Norman Angel Jones, em 1943, aos 22 anos, que a mineira nascida na cidade de Curvelo como Zuleika de Souza Netto mudou de sobrenome. Com ele, se imortalizou na história recente do Brasil e, também, como homenageada no Livro de Heróis e Heroínas da Cidade do Rio de Janeiro. Mas Zuzu Angel não foi apenas o ponto de partida para a produção, até então inédita, de uma moda genuinamente brasileira e repleta de referências à cultura nacional, que chegou com sucesso ao mercado externo. Viveu plenamente sua cidadania, ao denunciar por meio do seu trabalho os crimes da ditadura militar que vitimou seu primogênito Stuart, em 1971, sua nora Sônia, em 1973 e, finalmente, a própria estilista, em 1976.
Antes de uma fase alegre, seguida por outra, infeliz, da fama, Zuzu Angel costurava apenas para a família. Com a eleição de Juscelino Kubitscheck a presidente da República, em 1956, muitos mineiros migraram para a Capital Federal, no Rio de Janeiro – entre eles, uma tia de Zuzu, que era amiga da primeira-dama Sara Kubitscheck. No ano seguinte, a estilista começava uma carreira profissional, que rapidamente deslanchou. Desquitada e emancipada, criava coleções pensando na praticidade para o dia a dia da mulher que trabalhava fora. Mas também teve incursões na moda masculina, criou vestidos de noiva e até figurinos para o cinema e o teatro.
Estilo único
O caráter inovador da arte da estilista pode ser conhecido de perto em duas instituições que homenageiam sua memória: o Instituto Zuzu Angel de Moda do Rio de Janeiro, fundado em 1993 e primeiro a ter um curso superior de Moda na cidade; e a Casa Zuzu Angel de Memória da Moda do Brasil, inaugurada em 2015, ambos idealizados pela filha e jornalista Hildegard Angel.
Até a década de 1950, os figurinistas se limitavam a reproduzir, por aqui, o estilo parisiense. Mas Zuzu, que pode ser considerada a primeira estilista brasileira, assimilou elementos da cultura popular – materiais como rendas nordestinas, chitas com cores fortes, conchas, pedras brasileiras e estamparias que reproduziam a flora e a fauna tropicais. Sua marca registrada era um anjinho, que assinava o sobrenome Angel (anjo, em inglês), e tanto podia ser visto em um bordado ou em uma etiqueta aplicada na parte externa das peças, quanto nas sacolas, adesivos e papel de presente que criavam a identidade visual da grife.
Zuzu Angel chegou a abrir uma loja no bairro de Ipanema e a desenvolver, em parceria com a Tecelagem Santa Isabel, um tecido que misturava fibras de algodão com poliéster, batizado de Polybel. Na década de 1970, conquistou, também, o mercado norte-americano, no qual sua clientela era composta por celebridades como Joan Crawford, Kim Novak e Liza Minelli. Mas nem mesmo essa forte rede de contatos fez diferença na reviravolta que estava a caminho.
Alçada a personagem histórica
Membro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), o filho Stuart era estudante de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro quando desapareceu, em 14 de junho de 1971, após ser preso por agentes do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa). Enquanto procurava informações sobre o paradeiro dele, a estilista recebeu uma carta de Alex Polari de Alverga, na qual o ativista descrevia o suplício e morte de Stuart, ocorrido na Base Aérea do Galeão.
Começava a peregrinação de Zuzu Angel para denunciar à imprensa e à opinião pública, inclusive do exterior, as torturas, o assassinato e a ocultação do cadáver de Stuart. Foi assim que surgiu, no mesmo ano, aquela que é considerada a primeira coleção de moda política da história, com um desfile-protesto realizado no consulado brasileiro em Nova York. As criações misturavam os mesmos elementos identificados com o trabalho de Zuzu, como anjos e pássaros, agora em um contexto de violência e opressão – engaiolados, amordaçados, aprisionados e cercados de referências à violência militar.
Família predestinada
Em 14 de abril de 1976, Zuzu Angel morreu num suposto acidente de carro, ocorrido na Estrada da Gávea, na saída do Túnel Dois Irmãos, mais tarde rebatizado de Túnel Zuzu Angel. Mesmo tendo deixado por escrito, com o amigo Chico Buarque de Holanda, uma denúncia do risco que vinha sofrendo, levou mais de 20 anos para que o governo brasileiro admitisse que ela foi realmente vítima de um atentado do regime militar.
O nome de Stuart Edgart Angel Jones era uma homenagem de seu pai, Norman, ao pai dele e ao irmão, que foi assassinado por membros da Ku Klux Klan. Os três eram pastores protestantes norte-americanos.
Fontes:
Revista Zuleika. São Paulo, Itaú Cultural, ano 1, n. 1, abril 2014.
Site Educação UOL, site Memórias da Ditadura, site do Instituto Zuzu Angel.
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