Observador da sociedade e contador de histórias, Noel Rosa dedicou a maior parte de seus 26 anos de vida à música e à boemia. Em suas composições, retratava episódios do cotidiano, temas da época e personagens da cidade, sem preciosismos ou exageros poéticos. Integrou o morro e o asfalto e, assim, ajudou a transformar o samba.
O Poeta da Vila, como ficou conhecido, uniu-se a sambistas negros do Estácio (Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Baiaco e Brancura) e de morros cariocas, como o Salgueiro e a Mangueira – de seu parceiro Cartola –, numa época em que parcerias interraciais praticamente não existiam. Em 1954, Rubem Braga publicou um artigo na primeira edição da Revista da Música Popular, em que falou sobre Noel: “Lembro-me de uma noite em que fui ouvir um ensaio da Estação Primeira da Mangueira. O preto Cartola fez cantar os sambas da escola. E o único samba 'lá de baixo', o único samba não produzido na própria escola que ali se cantou, foi Palpite Infeliz. O morro respeitando Noel. [...]” – relatou o cronista, referindo-se à composição do jovem da Vila.
É de Cartola, inclusive, um dos primeiros sambas em homenagem a Noel, A Vila Emudeceu, feito logo após sua morte.
Uma trajetória musical
Filho de Marta Azevedo, professora, e Manuel Medeiros Rosa, comerciante, Noel de Medeiros Rosa nasceu no dia 11 de dezembro de 1910, no bairro de Vila Isabel, Zona Norte do Rio. Durante o seu nascimento, os médicos utilizaram o fórceps – instrumento que auxilia a retirada do bebê –, que acabou afundando seu maxilar e deixando-o com uma deformidade no queixo que o acompanhou por toda vida, e rendeu-lhe, na infância, o apelido de Queixinho.
Durante seus 26 anos de vida, Noel morou na mesma casa, na Rua Teodoro da Silva, onde, hoje, pode ser visto um prédio residencial que leva seu nome. Alfabetizado pela mãe, estudou, depois, nos colégios Maisonnete e São Bento. Aos 13 anos, começou a tocar bandolim “de ouvido”, sem estudar. O violão foi ensinado pelo pai, pelo primo Adílio e por alguns amigos. E, com 15 anos, já fazia serenatas com o irmão no bairro onde vivia.
Quando concluiu a escola, Noel ingressou na Faculdade de Medicina, que acabou abandonando três anos depois.
Em 1929, entrou para o grupo Bando de Tangarás (antigo Flor do Tempo), formado por moradores de Vila Isabel e alunos do Colégio Batista – Almirante, Braguinha, Alvinho e Henrique de Brito.
Ainda como componente do Bando de Tangarás, estreou no rádio – primeiro, na Educadora, depois, na Mayrink Veiga e na Rádio Philips. Nessa mesma época, teve contato com sambistas dos morros cariocas, como Canuto e Antenor Gargalhada, ao frequentar o bar Ponto de Cem Réis, na Vila.Em paralelo às apresentações com o grupo, Noel fazia gravações solo. Em 1930, despontou seu grande sucesso: a composição Com Que Roupa?. Sobre a letra, existe uma versão de que teria sido feita devido ao fato de sua mãe esconder-lhe as roupas para que ele não saísse, não fosse para as “farras”. Porém, essa história foi desmentida por Almirante em sua biografia sobre o compositor.
Composições: parcerias e polêmicas
Em 1932, Noel firmou uma parceria com o cantor Francisco Alves, substituindo Nilton Bastos no trio Bambas do Estácio, que passou a ter outras denominações, como Gente Boa, Turma da Vila e Batutas do Estácio.
Nesse período, destacou-se com uma série de sambas: Fita Amarela, gravado por Francisco Alves e Mário Reis; Filosofia, parceria com André Filho; A Razão Dá-se a Quem Tem, com Franscisco Alves e Ismael Silva; e Três Apitos.
Em 1933, surgiu a rivalidade musical entre Noel e Wilson Batista. Depois de Wilson compor o samba Lenço no Pescoço, enaltecendo a malandragem, Noel fez, em resposta, Rapaz Folgado – que só foi gravado após a sua morte, por Aracy de Almeida –, por achar que a apologia do sambista malandro denegria a imagem dos músicos.
A “discussão” não parou por aí, e a tréplica veio com Mocinho da Vila, de Wilson Batista, que não foi gravado. Depois, um novo samba de Noel, Feitiço da Vila, e outro de Wilson, Conversa Fiada. Seguiram-se, ainda, Palpite Infeliz, do Poeta da Vila, e duas composições de Batista, Frankstein da Vila e Terra de Cego, que terminaram sem resposta.
Quando se conheceram pessoalmente, na Lapa, Noel pediu a Wilson para fazer uma nova letra para a melodia de Terra de Cego. Assim nasceu Deixa de Ser Convencida, e pareceu ter fim a polêmica entre os dois compositores.
Além dos Tangarás, Noel participou do Grupo Gente do Morro, ao lado de Benedito Lacerda, Russo do Pandeiro, Canhoto e outros, fazendo apresentações em Campos (RJ), Muqui (ES) e Vitória (ES), em 1934.
Esse ano também ficou marcado por ter sido quando o compositor conheceu seu grande amor, a dançarina Ceci, do Cabaré Apolo, na Lapa. Com apenas 16 anos, a menina inspirou Noel a compor diversos sambas, entre eles Dama do Cabaré; Último Desejo; e Pra Que Mentir, em parceria com Vadico.
Em dezembro do mesmo ano, Noel casou-se com Lindaura, de 13 anos – 10 a menos que ele -, por pressão da mãe da menina. Grávida, ela perdeu o filho meses após o casamento. Mesmo casado, Noel não largou a vida boêmia e as noites nos cabarés.
A despedida precoce
Em 1935 – mesmo ano em que gravou o clássico Conversa de Botequim, outra parceria com Vadico – Noel viajou com a esposa a Belo Horizonte, Minas Gerais, com o intuito de descansar e cuidar de sua saúde, já debilitada devido a problemas no pulmão, agravados pelo cigarro. Mas nem na capital mineira ele conseguiu se afastar da noite e da boemia. Acabou retornando ao Rio, onde foi trabalhar na Rádio Clube do Brasil.
Cada vez mais debilitado, e diagnosticado com tuberculose, foi a Nova Friburgo (RJ), por ordens médicas, em busca de uma recuperação tranquila nos ares serranos. A tentativa também foi frustrada e o Poeta da Vila voltou à Cidade Maravilhosa, onde fez seu último samba, Eu Sei Sofrer (Quem é que já sofreu mais do que eu?/ Quem é que já me viu chorar?/ Sofrer foi o prazer que Deus me deu/ Eu sei sofrer sem reclamar/ Quem sofreu mais que eu não nasceu/ Com certeza Deus já me esqueceu).
Depois, ainda foi a Barra do Piraí, por sugestão de amigos e familiares, mas só ficou na cidade por uma semana. Devido à falta de recursos no local, regressou ao Rio, onde faleceu dois dias depois, em 4 de maio de 1937, aos 26 anos, em sua casa.
Homenagens póstumas a Noel
A Vila emudeceu
Dolorosamente chora o que perdeu
Ninguém é imortal
Morrer é natural
Ó Deus, perdoa
Se é que estou pecando
Que mal lhe fez a Vila
Que lhe está torturando [...]
A Vila Emudeceu, Cartola.
Noel Rosa foi homenageado em filmes, peças de teatro e discos dedicados ao seu repertório. Ao todo, compôs mais de 200 canções, interpretadas por diversos artistas, desde Francisco Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas e Aracy de Almeida – considerada sua maior intérprete –, até Chico Buarque, Paulinho da Viola e Maria Bethânia.
Em 1960, foi inaugurado um mausoléu em homenagem ao Poeta da Vila no Cemitério do Caju, no Rio, por iniciativa da Associação Atlética Vila Isabel. Dois anos depois, ele recebeu uma nova homenagem, com a inauguração da Escola Municipal Noel Rosa, no Grajaú.
Um monumento também foi instalado no Boulevard 28 de Setembro, no bairro de origem de Noel, em 1996. A cena retrata a música Conversa de Botequim: o cantor sentado, com um cigarro entre os dedos, uma garrafa de cerveja, um copo e a letra do referido samba à mesa, sendo atendido por um garçom. No entanto, em maio de 2016, o monumento foi retirado para restauração, depois de ter sido vandalizado em dezembro de 2015.
Em 2010, ano do centenário de seu nascimento, a Escola de Samba Unidos da Vila Isabel prestigiou o compositor com o enredo Noel: A Presença do Poeta da Vila, de Martinho da Vila.
A trajetória curta, porém intensa, desse jovem de classe média, reforça os dizeres de Feitiço da Vila, uma de suas grandes composições: “A Vila Isabel dá samba”.
Fontes:
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma Biografia. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Linha Gráfica, 1990.
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