Pelos idos de 1950, época em que pontuava no Brasil um forte sentimento nacionalista, baseado no desenvolvimentismo do governo do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976), pretendia-se, por meio dessa política nacionalista, trazer o país para a atualidade de então, oficializando um projeto que alcançasse o moderno e o novo. A modernidade era concebida como um tempo do despojamento, que exigia “uma estética do ‘menos’, fugindo do modelo do excesso”, segundo palavras da socióloga Santuza Cambraia Naves.
Nos anos finais da década de 1950 e nos primeiros da seguinte, em meio ao processo de industrialização que prosseguia no Brasil, jovens da classe média carioca, acompanhando a modernidade, por meio de propostas inovadoras, procuravam novas matrizes culturais. Havia um clima de prosperidade e de otimismo levantando os ânimos no país e na cidade, pois, em 1958, a seleção de futebol conquistou, na Suécia, sua primeira Copa do Mundo. Era uma época em que o mundo vivia intensa ebulição cultural, oferecendo um terreno favorável para o aparecimento de linguagens artísticas diferentes, em cores multifacetadas e sons elaborados.
Apesar de não haver uma data precisa que indique o surgimento da bossa nova, dois discos indicam caminhos: Canção do Amor Demais, de 1958, de Elizeth Cardoso, cantando composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com João Gilberto ao violão, e Chega de Saudade, no ano seguinte, do próprio João Gilberto. Este último foi aclamado por estudiosos como sendo a origem do novo estilo musical. Na gravação, ouve-se uma nova batida de violão – identidade para o movimento que surgia.
Ritmo e bossa nova. Ritmo é a batida como aquela do coração, do relógio. Na bossa nova, é aquela batida diferente obtida no violão, que a canção Batida Diferente, de Durval Ferreira, traduziu:
“Veja como bate engraçado o meu coração assim
Tum tum tum tum tum tum tum (...)
Bate realmente sincopado
Vem ouvir aqui
Mas bem pertinho de mim
Tum tum tum tum tum tum tum tum”.
Essa novidade, em compasso dois por quatro, era diferente de tudo o que até então existia. Até porque, no falar carioca dos anos 1950, bossa significava forma de fazer, jeito, maneira. Mas de fazer com um toque diferenciado, inovador, criativo.
Tradicionalmente, aceita-se que foi na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro que ocorreram as primeiras manifestações do que chamamos de bossa nova. Mas poderia ser em uma casa, como aquelas ajardinadas tradicionais da Tijuca. Ou em um apartamento de fachada retilínea, que cortava o horizonte na Zona Sul: Copacabana ou Ipanema. Instrumentistas, compositores e cantores, apreciadores do jazz e da música erudita, tiveram participação efetiva no surgimento da bossa – mistura de ritmos brasileiros ao som de requintada harmonia. Refinada por contar com material oriundo do jazz americano, justamente por esse aspecto, recebeu críticas e elogios.
Surgiram dissonâncias que criaram, musicalmente, efeitos narrativos extremamente diferenciados do que era feito até então. Havia algo de novo no ar. A música popular brasileira e a música carioca não seriam mais as mesmas.
O som que se espalhava era intimista: harmonias dissonantes e acordes elaborados ressoavam pelos espaços das residências onde estavam jovens – quase todos universitários de Engenharia, Arquitetura e Filosofia, que haviam estudado piano (alguns com as mães, conhecedoras da música clássica e do jazz) – no cômodo individualizado, chamado de sala de música, ou na sala de visitas, reunidos sob o olhar cúmplice e observador dos pais. A esse grupo juntavam-se amigos e amigos dos amigos, que se espalhavam pelo chão; naquela turma ninguém sentava em cadeiras. Aliás, uma atitude muito natural, completamente bossa nova.
Na paisagem do Morro do Corcovado, havia um clima de querer “a vida sempre assim, com você perto de mim, até o apagar da velha chama”, conforme os versos da canção Corcovado, de Antonio Carlos Jobim. Cenários e personagens suficientes e perfeitos para que, nos finais de semana, a “moça-flor” (título de uma canção de Durval Ferreira e Lula Freire) e o “rapaz de bem” (título de uma canção de Johnny Alf) marcassem encontros, cantando baixinho aquilo que era moderno. Aqueles jovens reunidos nos bairros cariocas de Copacabana, da Tijuca ou de Ipanema passaram a utilizar a expressão bossa nova em oposição a tudo o que era antigo, superado, quadrado. E os corações, nada descrentes, entravam no ritmo de uma batida diferente – a batida da bossa nova. A partir daí, os versos de Tom Jobim e de Vinicius de Moraes na canção Chega de Saudade seriam proféticos quanto à presença do novo estilo no cenário musical carioca: “e diz a ela que sem ela não pode ser”.
O violão era o instrumento, parceiro imprescindível, objeto de desejo dos alunos que frequentavam as escolas de música, que se multiplicavam especialmente na Zona Sul do Rio. Piano e violão, ao lado de uma bateria, aguardavam a chegada do charme discreto daquela trilha sonora que assim filosofava, nos versos do Samba da Bênção, de Vinicius de Moraes e Baden Powell:
“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração”.
Com letras simples, alegres e otimistas, completamente diferentes das composições anteriores, fez história. Adiante, rompeu fronteiras com João Gilberto, que inventara uma forma de tocar e de cantar convidando: “Vem ouvir um Hô–ba-la-lá” (verso da canção Hô-ba-la-lá, de João Gilberto). São palavras de quem viveu essa época, o jornalista e compositor Nelson Motta: “Tínhamos uma música que imaginávamos só para nós. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria”. E prosseguiria rompendo fronteiras geográficas em voz e violão ou em discos de vinil, resultado de parcerias históricas jamais esquecidas.
Vozes, sons, melodias. Verdadeiro fino da bossa navegando, algumas vezes num “barquinho a deslizar no macio azul do mar” (verso da canção O Barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli); outras, volteando em “pipas de papel de seda” (verso da canção O Astronauta, de Baden Powell e Vinicius de Moraes), utilizando a linguagem universal – a música – que aproxima e emociona, encantando a vida e o viver daqueles afinados ou não, “pois no peito dos desafinados também bate um coração”, segundo a canção Desafinado, de Antonio Carlos Jobim.