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Ladeira da Misericórdia, primeiro logradouro da cidade, que ligava o Morro do Castelo à várzea da Baía de Guanabara. Gravura de 1845 (Crédito: Louis Buvelot/Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro)

A questão do abastecimento de água na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro sempre representou, desde a fundação (quando o primeiro poço foi aberto pelos portugueses, próximo ao Morro Cara de Cão), um problema em busca de soluções. As dificuldades eram decorrentes da própria escolha da localização do sítio urbano: no alto do morro, onde não se dispunha de água potável. Na época, frequentemente as cidades eram assentadas em regiões próximas ao curso dos rios, onde dezenas de vezes abriam-se poços. A água ofertada era salobra, inadequada ao consumo humano, e tornava-se complexo e caro alcançar profundidades maiores. Daí a necessidade de os habitantes descerem as ladeiras buscando as águas do Rio Carioca.

Mas seu transporte, além de moroso, comprometia a higiene. Era executado predominantemente pelo escravo – o mesmo que descartava os tonéis contendo resíduos domésticos aproveitava a caminhada para, ao retornar, trazer a água que seria consumida. Os moradores que não possuíam cativos tinham como opção o comércio, de porta em porta, feito por aguadeiros (ambulantes que vendiam água), que cobravam altos preços. À medida que a população crescia, tornava-se urgente encontrar soluções para que a água potável chegasse (sem ônus) a todos os moradores da cidade.

Ao longo dos séculos XVII e XVIII, alguns projetos ganharam contornos. Em 1602, surgiu a primeira proposta de canalização do Rio Carioca, mas não foi em frente. Apenas em 1673 começaram os trabalhos de encanamento daquelas águas para a área central da cidade. A partir da conclusão das obras, a distribuição se deu por meio de fontes, chafarizes, bicas d’água e aquedutos. Tempos depois, o abastecimento a partir do Carioca alcançou o seu limite. O trecho correspondente à nascente era fiscalizado pelas autoridades coloniais, que zelavam pela preservação da Mata Atlântica. Porém, próximo à foz, na atual Praia do Flamengo, o controle desaparecia. “Ao longo do seu caminho instalou-se um verdadeiro colar de lavanderias públicas, bebedouros de animais e reservatórios de lixo e de esgoto. Em curto espaço de tempo as águas estavam poluídas”, registrou o professor Nireu Cavalcanti.

Os administradores da cidade, então, buscaram outras possibilidades de fornecimento, como a captação das águas do Rio Maracanã. A presença de um sistema de abastecimento de água potável propiciou o crescimento do Rio de Janeiro como um todo. Pelas ruas e vielas, no decorrer do século XVII, o vai e vem de pessoas e de coisas se intensificava. Os habitantes do Morro do Castelo desciam ladeiras, como a da Misericórdia e a da Ajuda, para os afazeres diários. Da primeira, resta um pequeno pedaço, que, se hoje não leva mais ao antigo trajeto, conduz a imaginar os primórdios da cidade.